Tinta de polvo em tabuleta de pedra
Sobre as escritas não humanas de Vinciane Despret, Maria Esther Maciel e Ursula K. Le Guin
Como escrevi na Correnteza # Agosto/2023, tive um período repleto de leituras sobre consciências não humanas. Entre essas leituras estavam A autora das sementes de acácia e outras passagens da Revista da Associação de Therolinguística, escrito por Ursula K. Le Guin, e Autobiografia de um polvo e outras narrativas de antecipação, que Vinciane Despret escreve baseando-se na proposta de Le Guin.
Além disso, Maria Esther Maciel lançou recentemente Animalidades: zooliteratura e os limites do humano, um estudo sobre a representação dos animais pela literatura e, principalmente, de companheiros caninos — que adoraria explorar, mas devo deixar para outra oportunidade.
Gosto muito das reflexões sobre as consciências não humanas e a representação delas na literatura porque, como discutido em Literatura? Para quê? (III) ao falar dos limites do realismo, a criação literária faz um contorno: intui, cria e traduz a partir de uma observação ativa, de uma ligação com aquilo que retrata.
Sempre lembro de um meme que brinca sobre a inutilidade do poder de ler mentes. Se conseguissemos visualizar o pensamento de alguém, é bem provável que a organização chegasse de forma bastante ininteligível: imagens, palavras, sons, cheiros, percepções e conceitos que sem nenhum paralelo de sentido.
Não seria diferente com as consciências não humanas, originadas ainda a partir de outra base orgânica. Por isso, se as formigas escrevessem poesia, o que escreveriam? Será que entenderíamos?
A formiga revolucionária
Vinciane Despret, logo no começo de Autobiografia de um polvo e outras narrativas de antecipação, escreve um glossário com três termos importantes para compreender o exercício proposto. Cada uma das definições carrega um percurso histórico no desenvolvimento do conhecimento científico especulativo e demonstram não só os objetivos, mas também os limites na compreensão das consciências. São eles:
GEOLINGUÍSTICA (s.f.): a geolinguística é um ramo tardio da linguística. Emergiu no momento em que os linguistas perceberam que os humanos não eram os únicos a terem criado línguas dotadas de estruturas originais, que evoluem ao longo do tempo e que permitem a comunicação entre falantes de reinos diversos. A geolinguística estuda as línguas de comunidades vivas, e às vezes até de comunidades não vivas — embora as recentes descobertas em defesa da existência de linguagens entre os não viventes continuem a ser objetos de controvérsias. A geolinguística originará posteriormente a therolinguística, especializada no estudo das formas literárias entre plantas e animais.
THEROLINGUÍSTICA (s.f.): termo derivado do grego thér (θήρ), “animal selvagem, fera”. Designa o ramo da linguística voltado ao estudo e à tradução das produções escritas por animais (e posteriormente pelas plantas), seja sob a forma literária do romance, da poesia, da epopeia, do panfleto ou ainda dos arquivos. Com a exploração por essa ciência do mundo dito selvagem, identificamos aos poucos outras formas expressivas, que transbordam as categorias literárias humanas (e remetem então a outro campo de especialização, ligado às ciências cosmofônicas e paralinguísticas). Encontramos o primeiro registro do termo ‘therolinguística’ num texto de antecipação de Ursula K. Le Guin: ‘A autora das sementes de acácia e outras passagens da Revista da Associação de Therolinguística'.
THEROARQUITETURA (s.f.): literalmente, ‘arquitetura do (reino) selvagem’. Ao fim do século XX, uma área precursora da theroarquitetura desenvolveu-se de modo vigoroso, notadamente sob o impulso do especialista e abelhas Karl von Frisch; ao longo do século XXI, foram realizadas numerosas pesquisas dedicadas às construções do reino animal. A palavra theroarquitetura, no entanto, surge tardiamente. Designa não somente o estudo dos habitats, mas também o das distintas infraestruturas criadas pelos animais (caminhos, galerias subterrâneas, elementos de signalética, monumentos, rotas de migração etc.); volta-se especialmente para as dimensões artísticas, simbólicas e expressivas desses artefatos.
Como descrito no segundo verbete, Le Guin é a pioneira na definição dos termos. Em A autora das sementes de acácia e outras passagens da ‘Revista da Associação de Therolinguística’, a escritora estadunidense se debruça sobre as possibilidades poéticas nascidas da consciência de seres vivos não humanos.
Mesclando as linguagens de divulgação e pesquisa científicas e a ficção, o livro é dividido em três pequenas partes. A primeira delas é intitulada Mensagem encontrada em um formigueiro e traz a descoberta da produção poética de formigas a partir de mensagens “escritas com a secreção da glândula de toque em sementes de acácia”.
A obra surge a partir de sementes deslocadas em um formigueiro e que, quando analisadas, revelam escritos em uma língua não humana formada a partir de sinais químicos das formigas. Esse suporte diferenciado revela questões estruturais profundas e que dificultam a tradução, como a falta de equivalência entre os usos dos verbos no infinitivo e da falta de sujeitos singulares nos textos dos insetos.
No entanto, quando os tradutores se deparam com uma semente repleta de escritos possivelmente revolucionários — “Coma os ovos! Para cima com a Rainha!” — e o cadáver abandonado de uma formiga, a tradução encontra um obstáculo: como essa forma de conhecimento foi organizada? Como ter certeza do sentido intuido?
No capítulo seguinte, pesquisadores tentam romper a necessidade do registro físico e duradouro nas linguagens e buscam colegas para analisar as danças dos pinguins imperadores em Anúncio de uma expedição.
Se o movimento no primeiro capítulo era refletir sobre a escrita em outros suportes pautados por consciências alternativas, aqui temos uma mudança mais radical: os pinguins não escrevem, eles usam linguagens cinéticas. Suas danças e movimentos, quase como uma performance, escapam à forma de pensamento da cultura escrita.
Por isso, o pesquisador procura companhia em sua trajetória. Sem um suporte de fácil acesso ao método científico, poucos são os que se aventuram com um objeto de pesquisa tão esguio.
O texto que encerra o livro de Le Guin é um Editorial escrito pelo presidente da associação de therolinguística. Ali, o presidente reflete sobre linguagem, comunicação e arte — e, também, sobre os limites dessas definições. De acordo com o texto, linguagem e arte são geralmente pautadas pelo potencial comunicativo, elas são formas de comunicação. Logo, se expandirmos a noção para outras formas de vida, podemos pensar que, se as plantas não se comunicam, logo, não tem linguagem e, portanto, não tem arte.
Mas ele se pergunta: “E se a arte não for comunicativa? Ou, se alguma arte for comunicativa e outras não?”. Usamos como filtro aquilo que conhecemos, mas o quanto deixamos passar daquilo que ainda não conhecemos? Se temos dificuldade em compreender a dança dos pinguins, quantas coisas deixamos passar das outras formas de vida?
Sobre o assunto, o diretor diz:
Nós mesmos, animais, ativos, predadores, procuramos (naturalmente o suficiente) uma arte comunicativa, predatória, ativa; e quando a encontramos, a reconhecemos. (…) Se existe uma arte vegetal não comunicativa, devemos repensar os próprios elementos de nossa ciência e aprender todo um novo conjunto de técnicas. Pois simplesmente não é possível trazer as habilidades críticas e técnicas adequadas ao estudo de histórias de detetive Doninha, ou a ficção erótica em Anfíbio, ou as sagas de túneis da minhoca, para abordar a arte da sequoia ou da abobrinha.
Uma das hipóteses que guiam a conclusão do editorial é que nossas interpretações tenham o Tempo como alicerce e que, para as plantas, a medida seja a grandeza da eternidade. Em outra vertente, o destaque para uma forma narrativa predatória e ativa me parece sintonizada com outro texto de Le Guin: A teoria da ficção como uma cesta, em que ela defende uma narrativa não pautada pelo progresso, conflito e violência, mas pela coabitação de elementos em um mesmo recipiente, uma narrativa que não surge pela linearidade e objetivo, mas pela coexistência.
Pensando no que diz respeito às existências das plantas (e coloco aqui seus parceiros do reino fungi), raízes e micorrizas — com suas trocas e sistemas não-centralizados — me parecem realmente estar mais próximos da uma ficção como cesta do que como flecha. Polvos, com um sistema nervoso ramificado, também.
O polvo escritor
Em Autobiografia de um polvo e outras narrativas de antecipação, Vinciane Despret escreve a partir de Le Guin para retratar novas iniciativas nas áreas da therolinguística, theroarquitetura e geolingüística e intensificar os questionamentos.
A mescla entre a divulgação científica e a ficção é muito mais intenso em Despret, já que trabalha com citações acadêmicas diretas — que constam na bibliografia do livro — e com as hipóteses e descobertas fictícias. Tanto que o livro abre com um aviso: alguns pesquisadores existe; outros, não. Consulte a bibliografia do livro.
Em A investigação dos Tinnitus ou as cantoras silenciosas, primeiro capítulo da obra, acompanhamos cientistas pesquisadores de aranhas que são atingidos pro um singular efeito de alucinações sonoras. Logo no começo, sua conjectura é guiada pelas descobertas recentes que envolvem a criação das teias, como elas se relacionam com a memória das aranhas e outros comportamentos.
Então, descobrimos que o som que os aracnólogos escutam tem particularidades que o distancia dos outros ruídos e adentramos no espaço das linguagens intersticiais — que acontecem no espaço entre audição e visão.
Explicam os relatórios do livro que “todos(as) no grupo dos aracnólogos afirmam que não se trata propriamente de sons, mas de vibrações, que se traduzem em pensamentos. Eles e elas declaram igualmente nunca antes terem tido conhecimento dessa capacidade de sinestesia atípica”.
Diferente dos que ouvimos — vibrações no ar que nossos ouvidos traduzem como barulhos — essas ondulações aracnídeas provocam alucinações, imagens, ou cadeias inteiras de um pensamento e são intensificadas pela perturbação dos animais pelo processo científico.
Ao comparar essas duas formas sonoras, o relatório traz o seguinte trecho:
Imaginem, só por um instante, o que elas devem pensar de nós! Uns tagarelas incoerentes! Pior! Bárbaros, analfabetos, iletrados! Pensem o que elas devem imaginar quando ouvem essa cacofonia vibratória sem gramática, sem rigor, sem ritmo, sem pontuação. Borborigmos — e olhe lá.
Ao colocar as aranhas como referência, Despret inverte os pontos de vista: como afirmar que, de acordo com as aranhas, não somos nós que não comunicamos?
As coisas ficam mais complexas no capítulos seguinte, porque deixamos o campo sonoro e partimos para reflexões arquitetônicas & espirituais em A cosmologia fecal entre os vombates comuns (vombatus ursinus) e os vombates-de-nariz-peludo-do-sul (lasiorhinus latifrons).
De maneira sintética, Despret parte das estruturas feitas pelos vombates com tijolos fecais para discutir questões costumes em habitat e cativeiros, a semiótica e o Gestalt nas construções, a potencialidade da arte em busca de uma beleza gratuita por meio de uma escatologia especulativa e o prazer estético existente nos animais e encerra com uma reflexão sobre a experiência do sagrado e as cosmovisões que guiam os vombates (com um trecho belíssimo sobre uma pesquisa que evidencia a sensação de luto e os ritos diferenciados que primatas adotam frente à morte dos companheiros.).
O terceiro e último capítulo é o que dá título ao livro. Em Autobiografia de um polvo ou a comunidade dos Ulisses, uma pesquisadora encontra uma placa com o que parece ser a história de vida de um polvo — mas a narrativa é composta por diversas caligrafias diferentes, com frases que dialogam entre si.
O estudo da narrativa leva à pesquisadora a uma comunidade centrada nos costumes e pensamentos dos polvos, onde pessoas com maior sensibilidade são retiradas de sua família quando crianças para aprenderem as linguagens dos polvos — pautada pela independência de cada um dos braços e do pensamento descentralizado — antes de serem contaminadas com a estrutura do pensamento hierárquico humano. Ali, todos se chamam Ulisses.
As reflexões que Despret apresenta aqui versam sobre o ato de criação artística, especulações sobre a forma de pensamento que emerge da corporeidade dos polvos e a preservação da memória das existências não humanas, inclusive em meio às extinções massivas causadas pela catástrofe climática.
Na conclusão do capítulo, os polvos, desaparecidos da comunidade, retornam — violentos, agressivos, hostis. Surge um desfecho próximo ao de Floresta é o nome do mundo, de Ursula K. Le Guin: o passado não tem respostas; é preciso criar e traduzir novos conceitos, que tampouco são bons.
Penso que parte da problemática apresentada por Despret nesse capítulo permanece sem resposta, já que dialoga com o colapso ambiental que vivemos. Se agimos para a preservação e retorno de espécies ameaçadas, o que faremos de diferente?
(Como diria uma certa formiga: Para cima com a rainha! Comam os ovos!)
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