Temporada 01 – Episódio 01: Entre cogumelos, rabiscos e calhamaços
Nessa semana: saiba o porquê dos cogumelos, entenda um pouco de ilustração científica e conheça o calhamaço ‘The Weird’, de Ann e Jeff VanderMeer
Depois do calor da publicação do primeiro volume — e de um texto que fermentou em várias semanas de crise, fiquei refletindo sobre os rumos da newsletter Não queria ser monotemático, mas não posso negar minhas obsessões.
Por isso, organizei em seções — algumas fixas, outras temporárias. Estou experimentando. Desencanei da ideia de fazer intercalado e resolvi adotar a ideia de Temporadas com episódios. Ainda não sei exatamente a duração, mas vamos indo. Dessa vez, por exemplo, posso dizer que pesei a mão. Achei que teria como falar de três coisas e o texto ficou maior do que deveria. Vou aprendendo… mas não desista! Segue comigo.
T01 E01: Por que cogumelos?
Não sei exatamente quando foi que comecei a estudar os cogumelos. Talvez eu tenha começado pela curiosidade de cozinhá-los; talvez tenha sido pela própria imagem de vida estranha que ele emana. O que sei é que a produção da antropóloga Anna Tsing sobre os fungos é uma das coisas que mais reforça meu interesse — e é disso que quero falar hoje com vocês.
Preocupada sobre as relações multiespécies, em seu texto Margens Indomáveis: cogumelos como espécies companheiras Tsing escreve “um argumento fúngico contra um ideal tão arraigado como o da domesticação, pelo menos o da domesticação de mulheres e plantas”.
Sua reflexão começa com a ideia da caminhada, de contemplar a natureza e sentir o cheiro de ozônio, seiva e folhiço depois das chuvas — com os sentidos ainda “vívidos de curiosidade”. Sob o viés contemplativo, Tsing diz que não há cenário mais prazeroso para encontrar cogumelos na terra ainda úmida.
Nesse caso, o prazer tem um papel de destaque porque, além da “recompensa generosa da dádiva” de um alimento que não é fruto de um trabalho dedicado, o prazer imprime a marca e cria a impressão de um lugar amigável e guia caminhadas futuras.
O prazer imprime uma marca: a impressão de um lugar. É a excitação dos meus sentidos que me traz à memória um conjunto de cores e tons, o ângulo da luz, as sarças espinhentas, o sólido aterramento da árvore e a subida do morro à minha frente. Muitas vezes, andando a esmo, repentinamente me lembrei de cada toco e de cada oco do lugar onde estava, inclusive dos cogumelos que um dia encontrei ali. Uma decisão consciente também pode me levar para pontos de encontros passados, já que a melhor forma de encontrar cogumelos é sempre voltar aos lugares onde você os achou antes. Em muitos casos, o corpo vegetativo (micélio), que sazonalmente frutifica cogumelos, persiste ao longo das estações; além disso, os corpos vegetativos de algumas espécies de cogumelos são companheiros vitalícios de árvores específicas. (…) Você visita aquele ponto o suficiente para conhecer as flores de cada estação e a atividade dos animais; você produziu um lugar familiar na paisagem. Lugares familiares são o início da apreciação das interações multiespécies.
São esses os lugares em que passamos a procurar por alimentos (ou a forragear, verbo importante para essa caminhada contemplativa). As existências desses lugares familiares e de seus forrageadores são importantes porque resistem aos conceitos de hiperdomesticação e de propriedade privada, implicando na identificação e interação entre múltiplos residentes e visitantes, na percepção de perigos, mas também de espécies companheiras. São espaços vivos, habitados & compartilhados por diversos seres e formas de vida.
Enfim, cogumelos
E onde entram os cogumelos nessa história? “Cogumelos são bem conhecidos como companheiros”, nos diz Anna. “O conceito de ‘simbiose’ – convivência interespecífica mutuamente benéfica – foi inventado para o líquen, uma associação de um fungo com uma alga ou com uma cianobactéria”.
Fungos são essenciais para outros tipos de seres, como plantas que só podem sobreviver por causa do envio de nutrientes ou da germinação causada pelos fungos — e o mais incrível é que os exemplos são diversos. Fungos quebram pedras e distribuem seus minerais, permitindo o nascimento de plantas em lugares inimagináveis. Alguns são responsáveis pela germinação de orquídeas. Outros moram nas raízes de plantas e fazem a comunicação e distribuição de nutrientes.
Claro. Nem toda presença fúngica é benigna já que, como descreve Tsing, eles são “assustadoramente onívoros em seus hábitos de conversão de carbono”. Os fungos podem sobrevivem em animais vivos e mortos. No nosso próprio corpo, fungos podem ser parasitas incômodos ou nos matar. Também existem outros, mais exóticos, que tomam gosto por combustível de avião e entopem tanques; que devoram madeira de navios em alto-mar — e a madeira morta das florestas, renovando o ecossistema. Como diz Tsing, “os apetites fúngicos são sempre ambivalentes em sua benevolência”.
O que os fungos evidenciam é: a interdependência entre espécies é um fato reconhecido, exceto para humanos — já que fomos cegados por uma narrativa de “excepcionalismo natural” e uma lógica dual sobre a natureza: de um lado aquilo que é domesticado pelo humano contra aquilo que é selvagem e precisa ser conquistado.
Só que a natureza é uma relação constante e mútua entre espécies. A implementação da dieta baseada em cereais, por exemplo, é uma domesticação dos humanos por esses vegetais, que nos inserem numa lógica autocrática que instaura um sistema centralizado de poder, que restringe o espaço, por exemplo, da mulher como parideira e da necessidade de filhos como mão de obra e nos faz obedecer a uma estrutura de plantio e manutenção.
Diferentemente dos cereais, os cogumelos existem sob outra lógica. Como escreve Anna, “os fungos são onipresentes, mas os cogumelos comestíveis e medicinais só crescem em poucos lugares. Muitos cogumelos valiosos desenvolvem-se em ambientes agrários equivalentes a costuras: nos limites entre campos e florestas, nas margens das zonas de cultivo”. Eles vivem nas bordas, em espaços indisciplinados, fronteiriços.
Podemos pensar que vem daí essa ligação com a Ficções Estranha, dessa presença ambígua e polivalente do símbolo em muitas narrativas. Além disso, o ato de forragear e de criar lugares amigáveis é interessante para guiar nossa produção: como compartilhar o saber e tornar nosso espaço (principalmente as newsletters) como um local amigável de diálogo e coabitação; sem domesticar o saber ou conquistar o leitor, mas no frutificar de uma biblioteca prazerosa.
Entre rabiscos e artigos: Conheça Lucas Kias
Enquanto procurava imagens para essa edição, encontrei o trabalho do biólogo Lucas Kias. Mestre em Diversidade Animal e Doutor em Biodiversidade e Evolução pela Universidade Federal da Bahia, Lucas tem um extenso trabalho autoral de ilustrações científicas pelas redes sociais. Depois de conhecer o trabalho que fazia no Twitter e no Instagram, resolvi aprender um pouco com ele e compartilhar com vocês.
Ilustração Científica
Uma das funções da ilustração científica na biologia é taxonômica: não só organizar nomes e categorias morfológicas, mas descrever espécies. Na maioria desses casos, para descrever uma espécie nova, é preciso de uma ilustração: “aí que entra o papel da ilustração científica, porque ela guia o olhar do leitor para determinadas estruturas que o autor quer que seja visto", me conta Lucas.
Você, como eu, pode ser perguntar: e por que não uma fotografia? “Essa é uma discussão frequente e muito proveitosa”, explica Kias, “mas, em primeiro lugar, a ilustração tem um grande poder de edição, rigor e objetividade, enquanto a fotografia tem uma riqueza muito grande de informações e, às vezes, prejudica quem quer observar certas estruturas”.
Além disso, outra função da ilustração científica é a proposição de modelos para espécies que não conseguimos ver e muito menos fotografar, como vírus, bactérias e o campo da paleoarte — que propõe estruturas para dinossauros a partir dos fósseis.
Redes Sociais
Kias encontrou nas redes sociais uma saída para suas artes autorais, sem as amarras dos direitos autorais geralmente cedidos aos periódicos científicos. “Desde que você produza um conteúdo com qualidade, todas as referências e a humildade de assumir seus erros”, me conta Lucas, “as redes sociais são amplas e democráticas para a divulgação de ciência, com uma linguagem que não precisa ser extremamente acadêmica nem com a barreira da produção em língua inglesa”.
Nesses espaços, o biólogo resolveu se desafiar. Depois de terminar o doutorado, começou uma série de desenhos semanais. Os primeiros foram os sapos, seu campo de estudo. Depois, insetos, área que ele já gostava. Hoje em dia, a cada mês, ele abre uma caixa de sugestão nos seus stories, seleciona as categorias mais indicadas e põe em votação no Twitter.
“E aí, o que o pessoal decidir, está decidido e eu tenho que me virar para fazer. Já tive situações em que eu pensava ‘onde é que eu fui meter?’“, contou. Um desses desafios surgiu com as serpentes e a necessidade de desenhar cada uma das escamas, plaquinha por plaquinha. Os cogumelos, fruto da última série, foram outro desafio.
Lucas torce por espécies que nunca desenhou. “Com isso, evoluo meu traço, a forma como desenho. É um aprendizado eterno. No fim das contas, nós somos biólogos, podemos fazer as coisas independentemente das disciplinas”, disse enquanto lembrava dos antigos e multidisciplinares naturalistas.
Na conclusão de cada semana, Kias faz um fio reflexivo no Twitter e conta sobre cada espécie: definições, curiosidades, fontes — como esse exemplo:
Ilustração Digital e Vendas
Por fim, Lucas é um defensor da ilustração digital e seu potencial de edição e revisão para a produção acadêmica. Seus primeiros desenhos eram feitos com uma caneta nanquim por meio da técnica de pontilhismo (um desenho composto por pequenos pontos). Não é difícil concluir que, além da dificuldade no processo, a necessidade de revisão implicava quase sempre na recriação da obra — obstáculo superado pelos meios eletrônicos e a possibilidade dos desenhos em camadas. O meio também é uma maneira de pular etapas, já que “o desenho vai precisar ser digitalizado de qualquer forma para poder ser publicado”.
Além dos fios e posts, Lucas também vende prints e adesivos autorais com seu trabalho. Então, não deixe de conferir o trabalho dele lá no Twitter e no Instagram (caso algum dos links não abra, é só procurar por Lucas Kias). Os fios para os cogumelos que ilustram essa newsletter estão aqui, aqui, aqui e aqui.
Glossodependência
Para encerrar essa edição, vou falar rapidinho sobre ‘The Weird: A Compendium of Strange and Dark Stories’, uma coletânea da Ann e do Jeff VanderMeer. De longe, é o maior livro que tenho nas minhas estantes: além de ter mais de 1100 páginas, é largo e diagramado em duas colunas.
O que me interessa no livro é que não é só um grande apanhado da Ficção Estranha, mas se constrói sob um recorte espacial que considero importante. Como já comentei em outro lugar, a construção de um cânone de literatura weird é bastante complicado pela predominância da língua inglesa e, também, porque a construção desse estrânhone absorve a porosidade e inconsistência das próprias narrativas, variando e destruindo grande parte dos seus pilares.
Nesse caminho, Ann e Jeff VanderMeer tiram o Weird debaixo das asas de Lovecraft e fazem um panorama bastante completo (citando, por exemplo, Julio Cortázar). Minha intenção primeira era trabalhar individualmente com os contos dessa coletânea e trazer para vocês, em edições intercaladas, mas preciso acertar as pontas e quantidade de contos inclui as semanas de alguns bons anos. De qualquer forma, vocês podem conferir a introdução do livro aqui.
[Não consigo evitar. Sempre volto para aquelas estantes. Talvez seja a familiaridade com os livros, que alimentam minhas inquietações. Quem sabe, o ambiente seja apenas agradável. O parque pela janela; os insetos e suas conversas; os humanos e suas rotinas… mas também pode ser o bolor, a mancha negra que cresce e dilata nas paredes dos fundos de maneira irrefreável… irrefreável & suculenta]
Obrigado por ler até aqui!
e não perca, na próxima edição: vamos descobrir o que são cogumelos, falar sobre o documentário Fungos Fantásticos (Netflix) e um curiosíssimo perfil do TikTok.
Se você gostou desse texto, não deixe de conferir as outras edições da newsletter Ponto Nemo, os textos do Estantário ou os episódios do podcast 30:MIN. Pode me seguir nas redes sociais, Twitter ou Instagram. Se quiser, pode responder a newsletter ou me mandar um livro de presente.
Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio “346 – Direitos Universais na Literatura: Lazer – com Chico Barney”.
Publiquei um texto no Estantário, chamado “Afinal, o que é Weird Fiction? (Ficção Estranha)” — e fiquei muito feliz com a repercussão.
Aliás, por causa dele, eu gravei um episódio no podcast Viva Sci-Fi sobre o mesmo tema.