Temporada 01 - Episódio Extra 01: Halloween e Máscaras de Fungo
Depois de ler a última edição de 20.000 Histórias Submarinas, a Lis me deixou com vontade de publicar uma edição especial & extra de Dia das Bruxas, mas não sabia do quê. Por mais que cogumelos-zumbis sejam interessantes, estou desgastado (se você não estiver, recomendo esse TED sobre parasitas).
Deixei para lá… até que recebi um tuíte com uma máscara feita de cogumelos, usada para afastar maus espíritos nas casas do Nepal. Encontrei o tema. Obrigado, Saskia.
Antes de começar, preciso fazer uma retomada rápida. Assim que recebi a foto, pensei que, claro, nada combinaria melhor com o Dia das Bruxas do que uma máscara, já que todo mundo se fantasia nesse dia para confundir os demônios e espíritos que visitam nosso mundo. Quer dizer… será?
Meu contato mais rigoroso com a história desse feriado estadunidense foi em um episódio de Supernatural, quando o demônio Samhain caminhou entre nós no dia 31 de outubro. Enfim, feriado importado, né? Nunca liguei muito, mas fiquei com a pulga atrás da orelha.
As raízes do Dia das Bruxas remontam ao Reino Unido, precisamente na véspera do Dia de Todos os Santos, All Hallow’s Eve. Esse feriado surgiu da tentativa de cristianizar um festival pagão, rearranjando os dias do calendário cristão para se aproximar do festival celta de fim do verão, o Samhain (se entendi direito, a pronuncia-se sau-en).
A celebração durava 3 dias, a partir do dia 31 de outubro, e marcava a divisão entre as duas metades do ano. A tradição, principalmente da região da Irlanda e da Escócia, celebrava a abundância da comida depois da época da colheita, mas também era momento de lembrar os mortos pela escassez do inverno. Os banquetes sintetizam bem essa dualidade: a fartura dos alimentos junto do sacrifício e consumo daquilo que não sobreviverá à próxima estação.
Tal festividade é o marco da divisão anual entre a metade iluminada e a escura de um ano de vida — ainda que a escuridão, para os Celtas, não remeta à maldade, mas a um caos fértil. Nessas cosmovisões, os dias começam na escuridão da mesma forma que, por exemplo, nossas vidas ao sair do útero.
A canalização dessa energia era reverberada em diversos rituais. Na faceta caótica, diversas pegadinhas, como a troca de lugar de equipamentos nas fazendas ou arremesso repolhos nos menos generosos, eram realizadas pelos membros da comunidade.
Além disso, por ser um momento em que a fronteira do nosso mundo e do mundo espiritual se torna mais fina (inclusive, passagem aberta para a visita de fadas) vários rituais de adivinhação, previsão e expurgo de medos se tornam propícios.
Mas onde ficam as máscaras e fantasias nessa história? Eu cheguei a pensar algumas vezes, enquanto pesquisava. No fim, é um dado muito incerto. Na matéria da BBC, o dado das fantasias aparece como um costume dos anos 1930. Em outro texto, The Celtic Origins of Halloween Transcend Fear, não vi nenhuma menção sobre o uso das máscaras e fantasias.
O mais próximo disso que encontrei foi em um texto sobre os costumes de Halloween no mundo celta e a presença dos espíritos dos antepassados. Conforme diz a autora Bettina Arnold, (deixo destacado um trecho):
Na Bretanha, acreditava-se que os mortos retornava para visitar amigos e parentes no Halloween, esperando ser entretidos. Na Irlanda, as pessoas não deixavam suas casas no Samhain a não ser que fosse absolutamente necessário, e eles se mantinham afastados dos cemitérios próximos às igrejas. Se você ouvisse passos atrás de você ao passar por um cemitério na noite de Halloween, era melhor não olhar para trás, porque os mortos estariam no seu rastro.
Na Escócia, a noite de Halloween era de diabruras e confusão. O espírito dos mortos era personificado por homens mascarados, velados ou de faces pintadas, vestidos de branco ou fantasiados com palha. A fronteira entre o mundo dos vivos e dos mortos era obliterada junto com outras divisões.
Para encerrar o grande parênteses, é curioso que essa tradição só chegue aos Estados Unidos no fim do século XIX, quando a Grande Fome da Irlanda faz com que 1 milhão de pessoas precise imigrar. É nos EUA que os costumes se transformam e passam a ter a cara que conhecemos hoje, como a presença dos espantalhos de milho e a troca do nabo pela abóbora como suporte para os entalhes.
A força do Halloween ficou enorme e é um dos feriado mais comemorados nos EUA & exportado aos outros países. Na tentativa de refrear essa colonização cultural, em 2003 criou-se o projeto de lei do Dia do Saci para o dia 31 de outubro, para valorizarmos nossas tradições — ainda que a escolha do dia me pareça estranha e a concorrência, desleal.
Enfim, o registro da breve pesquisa é menos uma introdução do que a inquietação de ter encontrado pouquíssimas coisas que me permitissem apresentar a máscara como artefato cultural presente em diversas esferas da história. No volume de hoje, o caminho que vamos seguir é outro: o dos rituais xamânicos.
T01 EE01: Máscaras de Cogumelo e Xamanismo
Em seu artigo Demônios e Deidades: Máscaras dos Himalaias, Thomas Murray apresenta a existência do estilo primitivo-xamânico de máscaras. Elas podem ter sido usadas para vários propósitos, como por oráculos ou em rituais de cura e iniciação. Mas a carga especulativa é bastante alta, já que há poucos registros desses costumes.
“Grande parte das máscaras de estilo xamânico foram criadas no Nepal", escreve Murray. Na região dos Himalaias, diversos grupos tinham o hábito de confeccionar máscaras de madeira, expondo-as à fumaça e gordura. Elas adquirem um tom escuro, defumado. É o caso das culturas dos Sherpa, Bhotya e Tamang.
No entanto, um dos grupos dessa região, os Rai, tem um registro diferente: algumas de suas máscaras usavam cogumelo como base — especificamente, cogumelos da família Ganoderma, uma linhagem de fungos usadas desde a medicina asiática antiga até os dias de hoje. Essas máscaras possivelmente eram usadas em rituais de cura. Depois das cerimônias, eram penduradas nas moradias para afastar maus espíritos, doenças e má-sorte.
Xamanismo
Segundo Murray, o xamanismo é mais próximo de uma cosmovisão animista do que de fato de uma religião. Suas raízes indígenas estão ligadas aos antigos pintores de caverna da Europa, às minorias asiáticas autóctones e aos grupos indígenas das Américas do Norte e do Sul.
Em suas tradições, as narrativas dos xamãs quase sempre seguem um mesmo caminho: o feiticeiro não é o melhor guerreiro, posição que geralmente é precedida pela de chefe, mas um indivíduo doente que se isola da comunidade. Nesse momento, vive sozinho em terreno selvagem e precisa contar com o auxílio dos espíritos da natureza e seus totens. Caso tenha sucesso na empreitada, ele retorna para sua comunidade — mas, mudado para sempre. Em contato direto com esses espíritos, não volta a fazer parte da comunidade de maneira completa, está sempre entre o mundo concreto e o espiritual.
Por isso, seu papel é cuidar das doenças dos membros de sua comunidade, chagas que surgem do mundo espiritual e precisam ser subjugadas com o auxílio do xamã — toda a natureza está em ligação com o sobrenatural, inclusive as doenças.
Em seu papel de ponte entre os dois mundos, o xamã também auxilia seus companheiros em questões de fertilidade e nos momentos de crise de vida — situações de transformação, como o nascimento, a puberdade, o casamento, um novo status social ou a morte.
Como forma de se conectar com esses poderes em outros planos, os xamãs precisam se sintonizar com o que querem operar. As mascaras são uma forma de canalizar essas energias, da mesma forma que vestimentas, armas, tambores e outros instrumentos — até mesmo substâncias psicotrópicas (como, por exemplo, cogumelos).
Sendo assim, o xamã não era só um guia espiritual, mas também o médico de um grupo: seu conhecimento se estendia para o uso farmacêuticos de botânicos — um conhecimento protegido e passado de geração em geração e que, hoje, perdemos.
Robert Blanchette, em seu artigo Extraordinárias máscaras fúngicas e seu uso por grupos indígenas da América do Norte e Ásia, traz um relato que exemplifica a perda desses saberes.
Dança do fungo
O curioso é que, além do Nepal, outros grupos da América do Norte têm registros dessas máscaras. Em continente americano, o cogumelo utilizado é o Agarikon, frutificação do fungo Laricifomes Officinalis. O uso é muito parecido com o que dissemos agora pouco, mas Blanchette traz um depoimento interessante:
Estudos realizados por Thomas F. McIlwraith, que ficou 11 meses morando com os Bella Coola no começo dos anos 1920 para aprender mais sobre suas cerimônias e sua cultura, revelaram práticas que incluíam sociedades secretas. Uma dessas era a sociedade kusiut (etimologicamente, significa a sociedade “sobrenatural” ou “erudita/aprendida”), que tinha um ritual cerimonial chamado ‘dança fúngica’.
McIlwraith aprendeu a língua e conviveu com os Bella Coola por muito tempo, descobriu diversos detalhes do ritual da dança fúngica, mas esse saber era restrito ao grupo de iniciados: pouco se sabe além do fato da máscara de fungo ser usada nessa dança e também em rituais de eclipse solar/lunar.
Por fim, o que me pareceu curioso é a presença dos cogumelos em localidades tão distintas. Ambos os grupos usaram fungos com propriedades medicinais na confecção de máscaras que auxiliavam os xamãs a se conectar com o mundo sobrenatural/espiritual. Essas máscaras, como diz Robert Blanchette, são exemplos curiosos de usos etnológicos de fungos que ecoam seu poder curativo e se transformam em símbolo de poder espiritual.
Esse foi um episódio especial temático, voltamos para a programação normal na próxima sexta. Inclusive, ganhei de presente de um amigo uma caixa de cultivo de Shimeji Branco & Salmão, logo trago relatos para vocês.
Obrigado por ler até aqui!
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