Resenha: S. — O Navio de Teseu, de J.J. Abrams e Doug Dorst
Entre labirintos, quebra-cabeças e a eterna busca pela identidade
Entre labirintos, quebra-cabeças e a eterna busca pela identidade
Existe mais de um caminho para percorrer ao apresentar a sinopse de S. — O Navio de Teseu. Em primeiro lugar, podemos dizer que vemos a história de um protagonista chamado S., que acorda em um litoral sem lembrar de sua vida pregressa e passa a buscar sua identidade na fronteira entre as necessidades profissionais-conspiratórias em que se vê metido e a busca pelo amor e companhia de Sola.
Mas S. — O Navio de Teseu também narra a história de um escritor misterioso (e possivelmente assassinado) chamado V.M. Straka. Responsável pela escrita da história de S., Straka está envolvido em diversas conspirações políticas e encontrou, na escrita, um fazer-político. Mas, ao mesmo tempo em que precisa lidar com as consequências do seu ativismo, o escritor precisa lidar com os laços e construções afetivas que surgem da relação com o tradutor dos seus livros, F.X. Caldeira.
Por fim, S. — O Navio de Teseu mostra dois leitores, Eric e Jen, que se correspondem pelas anotações nas margens de um livro na biblioteca e passam a construir um relacionamento. Eric foi chutado de um programa de pós-graduação e está em uma competição contra seu ex-orientador, Moody, e sua ex-colega, Ilsa, na publicação de uma obra sobre “a verdadeira identidade de V.M Straka”. Jen é uma universitária em crise, tentando descobrir o que gosta de fazer em meio às pressões dos pais e da grade universitária.
Escrito por J.J. Abrams e Doug Dorst, S. — O Navio de Teseu foi descrito como “um quebra-cabeça literário”. Mas quais são as peças que compõem esse enigma? Publicado em 2013 pela Mulholland Books, o livro foi publicado por aqui pela Intrínseca em 2015. Em entrevista, J.J. Abrams comenta a concepção do livro a partir da experiência de encontrar um romance em um aeroporto:
A ideia veio quando eu estava no aeroporto. Eu vi um livro esquecido em um banco, e eu fui pegar. Dentro, alguém tinha escrito, à caneta, “Para quem achar esse livro — por favor leia, leve para outro lugar, e deixe para outra pessoa encontrar”. Essa ideia romântica de que você pode deixar o livro em algum lugar com uma mensagem para alguém me fez sorrir. Me lembrou de estar na faculdade e ver as anotações que as pessoas deixavam nas margens dos livros que eles tiravam da biblioteca.
Então, eu comecei a pensar: e se tivesse um livro muito legal que fosse completamente anotado — coberto de anotações e marginálias entre duas pessoas? E — e se uma conversa, ou um relacionamento, começasse dentro de um livro?
Abrams pensou a narrativa como uma celebração do livro enquanto objeto físico. É dessa proposta que surgem os anexos — objetos importantes para a história e que são inseridos ali no meio, como que pelos personagens. São cartões-postais, mapas em guardanapos, recortes de jornais, cartas escritas e diversas outras coisas.
A pesquisadora Christiane Camara de Almeida publicou alguns textos sobre o projeto gráfico de S. — O Navio de Teseu, provenientes da pesquisa de doutorado que fez sob a orientação de Vera Nojima.
Consultei dois textos que elas escreveram em co-autoria, A produção de sentido e S. — O navio de Teseu: o design de Paul Kepple e Antonio Rhoden e Navegando pela semiótica de S. — O Navio de teseu, e é perceptível a importância que tem o projeto gráfico dessa obra.
Por ser uma ode ao formato impresso, diversos materiais tiveram que ser valorizados e pensados para potencializar a produção de sentidos e a imersão do leitor. O processo parte da verossimilhança de construir um livro de 1949, proveniente de uma biblioteca, e que tenha os elementos adequados para o período: páginas amareladas, tipos de carimbos, cores das tintas, um design de capa que faça parte do período, a tipografia mais adequada para a fonte do livro, tipos de caneta usadas por Eric e Jen.
O mesmo se aplica à produção dos anexos. Como construir um mapa em um guardanapo? Quais são os elementos necessários para os cartões-postais trocados — selos, paisagens, endereços, valores. Na etapa de tradução da obra, por exemplo, Antonio Rhoden teve que reescrever as conversas entre os dois leitores manualmente e precisou fazer ajustes em detalhes que passaram desapercebidos na obra americana (como o fato dos selos das correspondências brasileiras terem saído como cruzeiros numa época em que o real já tinha sido adotado).
“Com S. nossa ideia não foi criar um tipo diabólico de ‘sudoku’”, explicou J.J. Abrams. “A diversão estava em criar algo que era simultaneamente emotivo, doce, romântico, sério, misterioso, assustador e talvez em algumas partes até confuso — e que era, no final das contas, uma experiência imersiva, algo que seria divertido para as pessoas se aventurarem a descobrir”.
Camadas
Em Marginalia e Hipertexto: o personagem como crítico em S. ou O Navio de Teseu, artigo de Vitor Castelões Gama, temos a dissecação da narrativa em diversas camadas. Vitor apresenta, em primeiro lugar, a própria narrativa de S., escrita por V.M. Straka. A partir daí, surgem os paratextos e códigos introduzidos pelo tradutor F.X. Caldeira — geralmente carregados de intertextualidade, se relacionando com livros, autores e outras linguagens artísticas, tanto fictícios quanto reais.
Além disso, temos os diálogos entre os leitores Eric e Jennifer nas marginálias e anexos como terceira e quarta camada. Eu acrescentaria uma expansão na camada dos anexos, valorizando os hipertextos que apareceram em outras mídias: como parte da construção do “universo” de S. — O Navio de Teseu, Doug Dorst e J.J. Abrams produziram e divulgaram outros materiais, como uma transmissão de rádio em formato de podcast ou a confissão de um dos personagens do livro no YouTube. Jen, por exemplo, tem uma página no Tumblr.
A construção dessas camadas paratextuais, hipertextuais e intertextuais é importante porque formam a base para o ponto principal para os personagens do livro: a busca da identidade.
Labirinto
O Paradoxo do Navio de Teseu, citado no livro, é um problema enunciado por Plutarco em Vidas Paralelas. Basicamente, o problema trata da metafísica de identidade: se o barco de Teseu percorresse uma distância de um ponto A a um ponto B durante 50 anos e, nesse meio tempo, ele fosse renovando suas peças, uma a uma, ele ainda seria o barco de Teseu quando chegasse no seu destino?
Em S. — O Navio de Teseu, o problema filosófico está diretamente ligado com a vida das pessoas no e pelo texto. Todos têm, na palavra escrita, a maneira de existir e agir no mundo. São revolucionários que modificam a realidade pelas publicações, tradutores que se comunicam por meio do texto, leitores que veem suas leituras mudarem ao longo do tempo — palavras que mudam de sentido, marcações que demarcam sensações no momento da leitura. Até mesmo nós, de acordo com o que sabemos de cada um dos personagens durante as (re)leituras, sentimos as nuances nas leituras.
O Navio de Teseu se torna não só um problema filosófico, mas linguístico. A escrita parece um meio de permanência, de deixar uma marca no mundo, mas está repleta de transformações — uma problemática própria da construção de identidades.
O labirinto é uma imagem propícia para pensar o caminho para a descoberta de quem se é (a primeira temporada de Westworld, por exemplo, trabalha nessa direção quando usa o símbolo labiríntico). Verônica Daniel Kobs, em O literário e o extraliterário em S., de J.J. Abrams e Doug Dorst, retoma a imagem de Teseu no Labirinto do Minotauro para enfatizar como o processo de busca da identidade não é solitário: o herói grego recebeu a ajuda de Ariadne e seu fio condutor. Da mesma forma, o livro se estrutura em duplas que buscam a saída do labirinto: F.X. Caldeira e V.M. Straka; Eric e Jen; S. e Sola.
Por fim, penso que o labirinto também surge enquanto o próprio jogo narrativo. Retomando o texto de Vitor Gama, a ideia da “narrativa hipermidiática labiríntica” traz um labirinto que não é uma prisão, mas um desafio festivo que serve como teste da astúcia do visitante (talvez uma releitura possível para os dias de hoje sejam os Escape Rooms).
Esses labirintos, assim como a narrativa de S. — O Navio de Teseu, existem para serem percorridos — preferencialmente, explorando as potencialidades, sem uma visão completa ou a linearização da complexidade pelo Fio de Ariadne, transformando a narrativa linear.
O “quebra-cabeça literário” de J.J. Abrams e Doug Dorst é um convite para entrar na brincadeira, na homenagem ao livro enquanto formato físico. Em diversos momentos, os diferentes núcleos narrativos saem de sincronia e pesam. Como um labirinto, alguns trajetos podem ser frustrantes e anticlimáticos — mas, também como um labirinto, não existe uma trilha única para percorrer a narrativa.
É você quem deve encontrar sua trajetória, com a certeza de que aquele que entrar não será o mesmo a sair.
Obrigado por ler até aqui!
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