Resenha: Retorno a Brideshead, de Evelyn Waugh
Nostalgia e catolicismo compõem livro sobre esfacelamento da aristocracia inglesa
Nostalgia e catolicismo compõem livro sobre esfacelamento da aristocracia inglesa
Retorno a Brideshead, de Evelyn Waugh (2017)
Companhia das Letras/TAG- 390p.
O escritor inglês Arthur Evelyn Waugh marcou a primeira metade do séc. XX com seus romances satíricos e gerou o que Luis Fernando Veríssimo chamou de a “melhor prosa inglesa”. Considerado um dos “escritores maus”, conforme escrito por Alexandre Silva na introdução do livro, não escrevia sem veneno. “Não se escreve sem violência. Literatura é civilizatória (talvez) mas não é civilizada — uma grande diferença. O escritor está mais perto do saqueador, roubando e destruindo, do que do juiz, do dentista, do presidente do Rotary Club local”, disse Silva.
Somava-se à sua escrita, de acordo com quem era próximo do escritor, o desconforto provocado pela figura de Waugh. Ele foi descrito como arrogante, esnobe, desprezível e um bully exemplar; convocado como capitão para a Segunda Guerra Mundial, foi poucas vezes para a frente de batalha, já que era um líder que inspirava pouca confiança. Foi em um dos treinos desse conflito que Evelyn quebrou um osso da perna e, durante a recuperação, escreveu Retorno a Brideshead.
O livro é um ponto doce fora da normalidade ácida do escritor. Desencadeada pelas memórias do capitão Charles Ryder, as reminiscências fluem para o período entreguerras e colocam em evidência a diferença entre o ócio contemplativo da aristocracia inglesa e a racionalidade da eficiência técnica. Dessa forma, o sarcasmo e a ironia são recursos menos usados do que o encantamento, que constrói um tom nostálgico, pelos tempos idos, e melancólico, pelo esfacelamento de lordes, ladys e suas mansões.
Nesse contexto, dois pontos são destaque na narrativa: o contato que cada personagem estabelece com a graça divina e o desabrochar dos amores de Charles Ryder, que brotam com intensidade em sua juventude, mas, pouco a pouco, secam.
Os amores de Ryder
As memórias de Charles começam durante seu ingresso na Universidade de Oxford. Por meio dos conselhos do seu primo, somos apresentados ao ambiente político do campus, onde é preciso prezar pelo seu status, frequentar os melhores clubes e cafés, desprezar algumas companhias e conviver com amigos em posição estratégica, seguir normas de etiqueta nas convenções sociais, etc… Os conselhos formam um guia que, se seguido à risca, te leva até os círculos da elite inglesa.
As recomendações plantam em Ryder uma monotonia que só é podada ao despertar do seu primeiro amor, Sebastian Flyte. Sebastian é o terceiro de quatro filhos de uma tradicional família da aristocracia inglesa, os Brideshead, e seu grupo de amigos vive pelo campus dando festas, embriagando-se. Conforme Charles passa a habitar cada vez mais os círculos sociais de Sebastian, ele passa a sentir o mundo de outra forma, valorizando momentos de contemplação, como quando aprende a degustar vinhos, em detrimento das preocupações políticas e econômicas de seu primo.
Além disso, o contato deixa entrever um possível romance homoafetivo permeado, de um lado, pela idolatria de Charles ao Flyte e ao que ele representa e, do outro, pela inocência infantilizada de Sebastian. É essa relação que molda todos os outros amores de Charles. Ao conhecer a imponente mansão Brideshead, por exemplo, Ryder estabelece sua relação com a arquitetura e o Classicismo Barroco — movimento artístico caracterizado por um alto número de gravuras paisagísticas e pela composição clássica.
Dessa forma, essa pintura voltado para a fruição intelectual privada, destinada aos espaços domésticos — como os quadros de Charles que passam a decorar as salas de Brideshead — reforçam a nostalgia e o interesse pelo passado clássico em contraste com o modernismo do começo do século XX, que rejeitava os pressupostos tradicionais em favor da arte experimental. No livro, ao contemplar uma fonte, Charles diz:
“Foi minha conversão ao Barroco. Ali, sob aquele domo alto e insolente, sob aqueles forros trabalhados; ali, ao passar por aqueles arcos e frontões, até a penumbra da colunata, e sentar horas a fio, diante da fonte, sondando seus tons, registrando suas vagarosas ressonâncias, deleitando-me com todos os seus feitos de ousadia e invenção, senti surgir dentro de mim uma percepção completamente nova, como se a água que rebentava e borbulhava entre suas pedras fosse, de fato, a nascente da vida”.
As referências gregas também permeiam o livro e não só servem para solidificar a visão Barroca, mas também deixa ver o tom da narrativa, como no título da primeira parte do livro. Denominada Et in arcadia ego, o nome é referência de um quadro de 1637, pintado pelo francês Nicolas Poussin, e tem como tradução próxima “Até na Arcádia estou”. Arcádia era uma região cercada pelo mar onde se levava uma vida simples e, segundo os gregos, pura. A composição do quadro diz respeito à morte, em como ela habita qualquer lugar — inclusive as paisagens mais idílicas. É um prenuncio da decadência que vai permear o livro e a família de Sebastian Flyte.
“…naqueles lânguidos dias em Brideshead, eu acreditava estar bem perto do céu”
Por isso, a mansão e a relação de Charles com a arte arquitetônica se tornam uma espécie de alegoria para a transformação dos tempos. Em um momento avançado do livro, Charles se torna um pintor de mansões e construções imponentes (que começavam a ser vistas como ruínas) que serão demolidas em pouco tempo, grande parte pela falta de pertencimento ao novo mundo. Ele se tornou um “presságio da destruição”.
“Mais ainda que da obra dos grandes arquitetos, eu gostava de casas que cresciam silenciosamente com os séculos, captando e conservando o melhor de cada geração, enquanto o tempo refreava o orgulho do artista e a vulgaridade do filisteu, e consertava o trabalho grosseiro do operário boçal. Na Inglaterra, tais construções abundavam, e os ingleses, em sua última década de grandeza, pareceram se dar conta daquilo a que antes nunca haviam dado valor e aclamaram sua realização no momento em que ela se extinguia”
Por isso, vemos não só o ápice do amor de Charles e dos valores aristocráticos, mas fortemente sua queda. Em um determinado momento do livro, ao olhar as fotos dos tios de Sebastian Flyte e compará-los com o mundo de Hopper, um comandante de seu pelotão, Charles pensa:
“Esses homens (os tios) precisavam morrer, a fim de criar um mundo para Hopper; eram eles os aborígenes, vermes por força de lei, que tinham de ser baleados à vontade, de modo que as coisas se tornassem seguras para o caixeiro-viajante, com seu pincenê poligonal, seu aperto de mão gorduroso e úmido, sua dentadura à mostra num sorriso forçado. Eu me perguntava, à medida que o trem me afastava mais e mais de lady Marchmain, se ela também não teria a mesma estrela, se não estaria marcada, junto com a família, para a destruição por outros meios que não a guerra”.
Graça Divina
Enfim, Evelyn Waugh também quis trabalhar as maneiras de cada personagem aceitar a graça divina. Como católico convertido, a espiritualidade se tornou um ponto importante a vida do autor e fomentou diversas discussões quando colocada no livro — tanto pela veia satírica, que pôs a elegia em dúvida, mas principalmente pela abordagem do catolicismo.
Com uma narrativa que repleta de “puxões”, de forças maiores que recolocam os personagens nos pontos onde se esforçaram para distanciar, as farpas destinadas a fé católica se tornam inofensivas perto da força que ela tem e do final pouco congruente para Charles Ryder. Esse olhar satírico que permanece, mesmo no meio da nostalgia aristocrática e do catolicismo, é como o comentário que Antony Blanche, amigo de Sebastian, faz para Ryder:
“O singelo e cremoso charme dos ingleses, fingindo ferocidade. (…) Levei-o para jantar, a fim de alertá-lo sobre o charme. Alertei-o expressa e detalhadamente sobre os Flyte. O charme é a grande praga inglesa. Só existe nestas ilhas úmidas. Mancha e mata tudo em que toca. Mata o amor; mata a arte; temo, do fundo do coração, meu caro Charles, que ele também tenha matado você”.
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