Resenha: O Caminho Estreito para os Confins do Norte, de Richard Flanagan
"De sonhos imperiais e homens mortos, tudo que restou foi capim alto"
"De sonhos imperiais e homens mortos, tudo que restou foi capim alto"
O Caminho Estreito para os Confins do Norte, de Richard Flanagan(2015).
Biblioteca Azul- 430p. R$49,90
Parte da compreensão sobre a humanidade foi modificada após a 2ª Guerra Mundial. O envolvimento e morte de civis não-combatentes no conflito, conhecido hoje como “guerra psicológica”, e as consequências do Nazismo revelaram as potencialidades da obscuridade humanidade em proporções jamais vistas antes.
Os novos limites geraram questionamentos que reverberam em diversas narrativas, como O Diário de Anne Frank, Maus ou A Menina que roubava livros. O Caminho Estreito para os Confins do Norte, de Richard Flanagan, se encaixa nessa lista.
Lançado no Brasil em 2015, pela Biblioteca Azul, e ganhador do Man Booker Prize de 2014, o livro tem a construção da Ferrovia da Birmânia pelos prisioneiros do exército japonês como contexto histórico. Conhecida como “a Ferrovia da Morte”, a estrada de ferro envolveu 250 mil pessoas na construção de seus 415 quilômetros. Dos envolvidos, 100 mil morreram. A estimativa é que 2.800 dos mortos eram prisioneiros australianos. Um dos sobreviventes dessa parcela foi o pai de Richard, Arch Flanagan.
Na Festa Literária Internacional de Paraty de 2015(Flip 2015), Richard comentou sobre a influência da Ferrovia na memória da família. “Cresci como um filho dessa ferrovia da morte. Vi que eu tinha que escrever sobre essa experiência para minha família”, disse o escritor.
O processo de pesquisa para o romance foi intensa. Em um primeiro momento, Flanagan entrevistou seu pai com a intenção de extrair as minúcias do campo de prisioneiros — cheiros, gostos, texturas. Além disso, visitou os lugares e encenou a vida dos prisioneiros, carregando pedras e percorrendo trajetos. O ponto máximo foi uma viagem ao Japão, quando Richard visitou o guarda mais odiado por seu pai, Lee Hak Rae. Sentenciado a morte, mas com a pena convertida para alguns anos de prisão, Rae topou conversar com Richard Flanagan.
Depois da entrevista, Richard contou ao pai que Rae se tornara um velho bondoso e simpático. Além disso, assim como o restante dos japoneses, demostrava remorso e arrependimentos em relação aos acontecimentos. Nervoso, Arch desligou a ligação e, a partir daí, nunca mais falou sobre a guerra. “ Eu contei ao meu pai que tinha encontrado os guardas japoneses e que eles queriam pedir desculpas genuínas porque tinham vergonha do que fizeram. Meu pai ainda tinha uma memória muito boa, mas, no fim daquele dia, ele perdeu sua memória dessa época. Foi como se ele finalmente tivesse se libertado daquele experiência”, contou Richard.
Quando retornou do Japão, Richard já tinha queimado cinco manuscritos e recomeçou o trabalho. Dessa vez, escreveria a versão final dO Caminho Estreito…. “Cada um deles que eu considerava um fracasso queimava o manuscrito numa churrasqueira de verdade. Eu talvez não seja um bom escritor, mas sou um reescritor bom”, disse.
Ao finalizar o livro, Richard visitou seu pai, Arch Flanagan, para notificá-lo. Na mesma noite, Arch faleceu com noventa e oito anos de idade. O livro é dedicado ao prisioneiro san byaku san ju go — prisioneiro 335, em japônes — numeração dada à Arch Flanagan no acampamento.
“Um homem feliz não tem passado, enquanto um infeliz não tem outra coisa” — p.12
Memória
A memória, tão presente na construção, ecoa pela estrutura do livro. O click que desperta a narrativa é ativado quando Dorrigo Evans, convidado para escrever o prefácio de um livro sobre a guerra, relembra do prisioneiro dono do caderno de desenho que escondeu até o fim da guerra. Segue, abaixo, um trecho do prefácio:
“E depois, ninguém realmente se lembrará disso. Como os maiores crimes, será como se nunca tivesse acontecido. O sofrimento, as mortes, a tristeza, a abjeta, a patética gratuidade desse imenso sofrimento de muitos. Talvez tudo exista somente dentro destas páginas e das páginas de alguns outros livros. O horror pode ser contido dentro de um livro, receber forma e significado. Na vida, porém, o horror não tem mais forma do que significado. O horror simplesmente é. E, enquanto ele reina, é como se não houvesse nada no universo que não o seja (…).
A guerra, porém, tem sua própria lógica. O império japonês acredita que vencerá — o indomável espírito japonês, aquele espírito que o Ocidente não tem, aquele espírito que ele invoca e compreende como a vontade do imperador(…). E, para ajudar tal espírito indomável, para cooperar com essa crença, o império tem a sorte de ter escravos. Centenas de milhares de escravos, asiáticos e europeus(…). Quando, em 25 de outubro de 1943, a locomotiva a vapor C 5631 percorre o trecho construído da Ferrovia da Morte — o primeiro comboio a fazê-lo — , rebocando seus três vagões de dignitários japoneses e tailandeses, ela passa por intermináveis leitos de ossos humanos, que incluem os restos mortais de um em cada três desses [prisioneiros] australianos.
Na placa diante da locomotiva C 5631 não há menção a isso. Tampouco há menção ao horror da construção da ferrovia. Não há os nomes das centenas de milhares que morreram construindo essa ferrovia. E não há nem sequer uma contagem consensual dos que morreram na Ferrovia da Morte. Os prisioneiros de guerra Aliados eram apenas uma fração — cerca de sessenta mil homens — dos que trabalharam como escravos nesse projeto faraônico. Ao seu lado estavam 250 mil tâmeis, chineses, javaneses, malaios, tailandeses e birmaneses. Ou mais. Alguns historiadores dizem que cinquenta mil desses trabalhadores escravos morreram, alguns dizem cem mil, alguns duzentos mil. Ninguém sabe.
E ninguém jamais saberá. Seus nomes já foram esquecidos. Não há um livro para suas almas perdidas. Que eles tenham este fragmento.” p.31–33.
O fluxo da memória de Dorrigo é o que guia a maior parte dO Caminho Estreito… – conforme novos personagens são apresentados, suas lembranças também levam a história para outros pontos de vista. Sendo assim, o desencadeamento da narrativa ocorre por associações e não de acordo com a ordem cronológica. Em alguns momentos, desdobramentos futuros dão sentidos à cenas apresentadas no começo do livro.
É um retrato da memória humana que, mais perto de um álbum de família desorganizando do que a filmagem da festa, revive situações estruturadas no diálogo entre lembrança e esquecimento. Isso fica claro quando, no começo do livro, a descrição de diversos personagens fica debilitada pelo esquecimento dos rostos. No entanto, conforme a leitura avança e outras lembranças são desencadeadas as caracterizações vão, gradativamente, aparecendo no texto – tons de pele, barba, cabelo e o estado desgastado dos corpos.
É como se Kurt Vonnegut e seus trafalmadorianos, de Matadouro 5, contassem a história da Ferrovia da Morte com a crueza e seriedade de John Hersey, em Hiroshima.
“Já não havia mais homens saudáveis. Havia somente o doente, o muito doente e o moribundo” — p.57
Poesia
A literatura e, principalmente, a Poesia são elementos fundamentais no livro. Partindo já do título, O Caminho Estreito para os Confins do Norte é inspirado no livro homônimo de um poeta japonês chamado Matsuo Bashô, conhecido por seus haicais — presentes no livro antes do início de cada capítulo. As produções poéticas dos japoneses que permeiam o livro se relacionam diretamente com a epígrafe do livro, escrita pelo poeta alemão e judeu Paul Celan: “Mãe, eles escrevem poemas”. Como podem, seres capazes de tamanhas atrocidades, escreverem poemas? Celan perdeu os pais em um xcampo de concentração e foi também prisioneiro. Décadas depois de sua liberdade, Paul suicidou-se.
Dentro do livro, a incorporação do paradoxo se torna clara em um diálogo entre Kota e Nakamura. Em um primeiro momento, o coronel Kota descreve minuciosamente como aprendeu a maneira mais eficiente de realizar uma decapitação e da realização que sentiu. A partir daí, o relacionamento dele com as pessoas passou exclusivamente pelos pescoços. Ele diz: “Isso é tudo [pescoços] que eu realmente vejo nas pessoas agora. Seus pescoços. Não é certo pensar dessa maneira, não é? Não sei. É como sou agora. Conheço alguém novo, olho para seu pescoço, o avalio — fácil de cortar ou difícil de cortar. E isso é tudo que eu desejo das pessoas, seus pescoços, aquele golpe”. Logo em seguida, passam a discutir sobre a poesia japonesa:
“Não é só a ferrovia, disse o coronel Kota, embora a ferrovia precise ser construída. Ou mesmo a guerra, embora a guerra deva ser vencida.
Tem a ver com os europeus aprenderem que eles não são a raça superior, disse Nakamura.
E nós aprendermos que nós somos, disse o coronel Kota.
Por alguns instantes nenhum dos dois falou, aí o coronel Kota recitou:
Mesmo em Kyoto
Quando ouço o cuco
Sinto falta de Kyoto
Bashô, disse Nakamura.
Falando mais, Nakamura ficou encantado ao descobrir que o coronel Kota compartilhava sua paixão pela literatura tradicional japonesa. Eles foram ficando sentimentais à medida que falavam sobre sabedoria mundana dos haiku de Issa, a grandeza de Buson, a maravilha do grandioso haibun de Bashô. O caminho estreito para os confins do norte, que, disse o coronel Kota, resumia em um livro o gênio do espírito japonês” — p. 126–127
O espírito japonês, marcado pelo bushido, é destacado por Kota e referenciado em diversos momentos do livro. O bushido, caminho do guerreiro, consiste na leadade, coragem, honestidade e autocontrole com benevolência. Deve-se, também, ter disposição para desempenhar o seu papel na representação que é a vida – se falhar, é preciso sair de cena dignamente: pelo suicídio.
Além dos haicais, o Poema de Morte é outro estilo literário em destaque no livro, aproximados pela questão da perenidade humana.Os textos, escritos por monges ou praticantes, capturavam o estado espiritual e psíquico despertado no poeta próximo da morte. A crença era de que, com a iminência de seu falecimento, o moribundo se purificaria dos apegos e ignorâncias, se tornando um quase-Buda com sabedoria plena.
“O espírito japonês é agora ele próprio a ferrovia, e a ferrovia, o espírito japonês, nosso caminho estreito para os confins do norte, ajudando a levar a beleza e a sabedoria de Bashô ao vasto mundo” – p.128
Contemporaneidades
Conforme destacado por Leyla Perrone-Moises em seu livro Mutações da Literatura no Século XXI, o hábito de falar da literatura dentro de textos literários não é exclusivo do nosso tempo, mas se intensificou nos últimos anos. Parte do motivo vem da força que o leitor múltiplo e descentrado adquiriu ao crescer sem um centro filosófico ou cânone literário.
Além disso, Leyla comenta sobre a presença do “acerto de contas” em várias obras literárias. São tramas cotidianas que, tendo em vista a complexidade da sociedade atual e os problemas que enterramos prematuramente, retomam questões não-finalizados com o único intuito de exorcizar, acertar as contas com um passado que não pode ser alterado.
Richard Flanagan é jornalista e, como não queria escrever uma biografia e nem um livro de guerra, resolveu retratar a história das atrocidades com uma história de amor do fictício Dorrigo Evans. No entanto, a história de Dorrigo é, em alguns momentos, menos interessante que o contexto retratado e a leitura se torna arrastada.
Sendo assim, é possível entender que o intertexto presente na obra de Flanagan estrutura a multiplicidade dos pontos de vistas — prisioneiros, guardas, civis — apresentando livros do ocidente, como Ulisses, Minha Luta ou Dom Quixote, e do oriente, como os haicais e poemas de morte.
Além disso, a pluralidade expõe a incapacidade de interpretações deterministas da realidade. A trama de um sujeito fraco, repleto de defeitos e que assiste às atrocidades impotente revela um livro que tem a intenção de desafogar a o passado do pai de dentro do escritor, sem perder de vista o que é destacado no romance: O mundo apenas é.
“Depois que ele partiu, ela jogou as medalhas no fogo de seu fogão a lenha. Alguns dias mais tarde, limpou as cinzas e, por um instante, não soube ao certo o que era o metal derretido no cinzeiro do fogão quando as jogou no terreiro. Dezenove ano mais tarde o grande incêndio de 1967 varreu o lugar, consumindo tudo à sua frente. A fazenda de lúpulo, agora administrada pelo filho, seu lar de madeira e a casa de tijolos, a mais nova, as fotos dela e de Jack, tudo se perdeu nas chamas. E sobre o metal derretido que um dia fora medalhas, lançando naquele que um dia fora um galinheiro, uma nova camada de cinzas se depositou. Depois de mais alguns anos, lá cresceram samambaias e cornisos e murtas, até que o lugar que fora o sonho da vida de Jack se tornasse uma floresta, e a floresta soltasse folhas e cascas de árvore e galhos, e passado mais tempo as cinzas desapareceram sob novas camadas decompostas de turfa e nova vida” — p.359
Obrigado por ler até aqui!
Se você gostou do texto, considere apoiar o financiamento coletivo (ou pode me dar um livro de presente). Mas saiba que só de compartilhar, você já auxilia na manutenção do conteúdo.
Além disso, não deixe de conferir a newsletter Ponto Nemo. Também tenho outras produções do Estantário e faço parte do podcast 30:MIN. Também estou no Twitter e no Instagram.