Resenha: Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist
Fragmentação do indivíduo moderno e a impossível busca da Justiça Absoluta
Fragmentação do indivíduo moderno e a impossível busca da Justiça Absoluta
Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist (2013).
Civilização Brasileira- 176p. R$39,90
Ao lado de A Metamorfose e de Coração das Trevas, a obra de Heinrich von Kleist, Michael Kohlhaas, é considerada uma das obras breves mais importantes da humanidade. A escrita de Kleist, que une reforma social e experimentos literários, criou importantes obras da literatura alemã, como a comédia O Jarro Quebrado, a tragédia Pentesileia e a novela aqui analisada.
Michael Kohlhaas, ao valorizar a subjetividade, as situações grotescas e as discussões filosóficas, antecipou movimentos literários, como expressionismo e o existencialismo, influenciou a escrita de escritores importantes, como Franz Kafka, e trouxe o sujeito inquieto e desfragmentado da modernidade para as páginas da literatura.
Esse homem extraordinário poderia ter sido considerado, até seu trigésimo ano de vida, o modelo de um bom cidadão. Ele possuía, em uma aldeia que ainda traz seu nome, uma quinta na qual ganhava tranquilamente o pão com seu ofício; os filhos que sua mulher lhe deu, ele os criou no temor a Deus, para o trabalho diligente e a lealdade; não havia um só entre seus vizinhos que não tenha se alegrado algum dia com sua caridade ou sua justiça; resumindo, o mundo teria de abençoar sua memória, caso ele não tivesse se excedido em uma virtude. O sentimento de justiça, porém, fez dele um bandoleiro e um assassino — p.5
A novela alemã conta a história do comerciante de cavalos, Michael Kohlhaas, que é parado em um pedágio falso no terreno do barão Wenzel von Tronka pela falta de um salvo-conduto. Apesar de suspeitar da invencionice, Kohlhaas deixa dois de seus cavalos como garantia e se dirige às autoridades para providenciar o documento. Ao retornar com a declaração, o comerciante encontra seus cavalos magros e maltratados. Indignado com a injustiça, Kohlhaas começa a sua luta pela devolução dos cavalos nas condições em que foram deixados.
Como a narrativa se passa na metade do século XVI, o contexto que permeia a novela é a formação do Estado absolutista, que modifica a relação de poderes e enfraquece os poderes regionais dos feudos ao mesmo tempo em que fortalece os do rei. Kleist, então, apresenta o começo do mundo oficial daquela sociedade e como, para frear o progresso do poder real, inventaram-se diversas zonas alfandegárias — como o pedágio visto na novela.
Nesse contexto, a seu modo, Kleist antecipa o que viria ser o trabalho de Franz Kafka. Como destacado por Luis Krausz, no Estadão, a obra “evidencia a precariedade de todas as instituições humanas, as ambivalências às quais está sujeita, em todos os seus aspectos, a vida dos mortais, e a facilidade com a qual, sobre a terra, as coisas se transformam em seus opostos”. Além disso, a novela antecipa “as perplexidades do homem moderno, liberto de dogmas, assim como antecipa o existencialismo e a estética expressionista”.
As dualidades se tornam elementos fundamentais na obra. Esses binômios estruturam os debates e, conforme o prefácio de Marcelo Backes, também tradutor, abordam “de um lado o ideal subjetivo, do outro a realidade mundana; de um lado a liberdade individual, do outro a opressão governamental; de um lado o povo, do outro a nobreza; de um lado a missão social de um Estado nascituro, do outro o abuso de poder perpetrado por seus representantes”.
Kohlhaas é também uma expressão dessas dualidades. Quanto mais avança no seu propósito de justiça social, mais ele transforma a luta em uma causa subjetiva e pessoal. Ele se volta para questões grandiosas, mas é também vaidoso com a beleza de seus cavalos. Em certos momentos, ele busca satisfação pessoal e vingança.
Dualidades que geram o paradoxo de Kohlhaas: a irreversibilidade dos atos.gera uma busca pela justiça absoluta inexistente.
A novela, que já teve uma adaptação cinematográfica homônima em 2013, ainda hoje, apesar da narrativa concisa e da sensação de perigo que proporciona, é “criticada de forma avassaladora pelos leitores contemporâneos devido à falta de nexo, à estrutura confusa e por causa da aparente ‘pressa’ do talhe formal”, segundo Backes, mas tem papel histórico assegurado pelo embasamento que providenciou para os textos futuros.
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