Riscos do orgulho intelectual
Frankenstein é um dos mais icônicos livros de terror de todos os tempos: foi escrito por uma mulher, abriu portas para a ficção científica e popularizou temáticas, como a reanimação de tecidos mortos e a criação de vida artificial. Desde a concepção de sua história, o caminho do cientista Victor Frankenstein foi longo: Nascido em 1816, passou por mais de 3 edições de sua escritora, participou de 15 adaptações cinematográficas, serviu de inspiração para incontáveis personagens e, devido à versão do filme Frankenstein (1930), foi fundido à sua criatura em sua versão mais conhecida: o monstro verde com cicatrizes e parafusos no pescoço. Foi para comemorar o aniversário de 200 anos da história do criador e sua criatura que a Darkside lançou a versão Deluxe do romance Frankenstein.
Mary Shelley deu à luz ao seu livro com 18 anos. O excêntrico poeta inglês Lord Byron, figura importante para o romantismo, convidou um grupo de amigos para sua casa durante o verão, mas, devido às anormalidades climáticas que configuraram o chamado ‘Ano sem Verão’, todos ficaram presos em sua residência. Nesse contexto, Byron propôs um desafio literário: quem escreveria a história de terror mais arrepiante? A partir dessa brincadeira, Shelley escreveu Frankenstein e o dr. Polidori, outro integrante do grupo, escreveu a primeira versão do vampiro aristocrata, o Lorde Ruthven, do conto The Vampyre (1819).
“Ocupei-me em pensar uma história — uma história que rivalizasse com aquelas que nos incitaram a tal tarefa. Uma que falasse aos medos misteriosos de nossa natureza e despertasse um horror eletrizante — uma história que fizesse o leitor olhar ao redor apavorado, que fizesse o sangue gelar e acelerasse o pulsar do coração. Caso não conseguisse fazê-lo, minha história de terror não seria digna desse nome” — Mary Shelley sobre sua criação
No momento em que Mary Shelley concebia o livro, o mundo discutia as aplicações da corrente elétrica de Benjamin Franklin, os experimentos de Erasmus Darwin, avô de Charles Darwin, e de Fracis Galton, o pioneiro nos estudos de genes raciais, a eugenia. Assim, a primeira versão, apresentada em 1816 no grupo de amigos, não sobreviveu, mas teve uma edição publicada em 1818. Anos depois, em 1823, Shelley revisou sua obra. Por fim, no Halloween de 1831 Shelley lançou a última edição, onde aprofundou as relações de Victor e da criatura, baseada nas tradições do doppelgänger. De linhagem germânica, doppelgänger significa ‘duplicata andante’ e é representado por algum monstro que se torna a cópia exata da pessoa que passa a acompanhar.
O livro é chamado Frankenstein ou o Prometeu Moderno pois possui relação com a história de Prometeu. Em sua versão mais conhecida, Prometeu foi um titã que roubou o fogo dos deuses para os humanos e foi castigado: amarrado em uma pedra, uma águia iria comer seu fígado todos os dias, durante 30 mil anos.
Nesse momento, a literatura retomava as referências dos mitos gregos antigos como meio para ressaltar a pureza do mundo antigo em contraste com a modernidade. A figura de Prometeu foi retomada na literatura romântica com o intuito de valorizar a natureza, as emoções e a pureza da arte em contraste com a perversidade da ciência. Assim, Prometeu não enfatizava audácia do desafio em enfrentar os deuses, mas mostrava a arrogância do ‘criar’ em contraste com a face sagrada da natureza. Além disso, Frankenstein também flertou com algumas características góticas, como a solidão, o grotesco e o medo do esquecimento.
Conforme dito por Márcia Xavier de Brito, na introdução da edição, “Frankenstein torna-se uma fábula moderna para os riscos do orgulho intelectual desmedido”. Márcia também comenta que, dentro de seu livro, Shelley faz com que nós nos questionemos: “quem é o verdadeiro monstro em Frankenstein? A criatura sem nome, de aparência repugnante, ou o criador, Victor Frankenstein, com seu egoísmo, seu orgulho e seus conhecimentos monstruosos, que desafia a natureza usurpando a tarefa de criar vida destruindo todos os seres que ama?”.
Por fim, Márcia Xavier de Brito retoma a “raiz da palavra ‘monstro’ — que aparece mais de trinta vezes no romance —, está o verbo latino monere, que significa ‘avisar, prevenir’ e mostra que Frankenstein pode ser um romance que busca avisar sobre os riscos de um conhecimento desmedido.
Como dito, Mary Shelley foi pioneira ao tratar de assuntos como vida artificial e reanimação de mortos, mas a série de experiências trágicas que passou podem ter influenciado nas suas perspectivas. Sua mãe Mary Wollstonecraft, escritora feminista, morreu dez dias após dar à luz a Mary Shelley. Além disso, três dos seus quatros filhos morreram ainda na infância, entre 1815 e 1819. Por fim, Mary e seu esposo, Percy Shelley, foram abalados por dois suicídios seguidos: o da meia-irmã de Mary, Fanny, e da primeira esposa de Percy, Herriet. Essas experiências podem ter servido de combustível para o tratamento do nascimento como uma benção e uma maldição em suas obras. Em Frankenstein, o monstro encarna uma caricatura do ciclo natural da vida.
Partindo dessas perspectivas, o livro trata da busca de dr. Frankenstein na criação e manutenção de vida consciente e racional. Mas, ao obter sucesso em seu experimento, Victor se apavora com a monstruosidade que criou e foge. Confusa e irada, a criatura dedica sua nova vida à vingança. No embalo dos heróis gregos, a hamartia de Victor Frankenstein, o erro que causa a queda de um herói trágico, foi sua ganância, sua sede de conhecimento.
Quem guia a narrativa no começo do livro é Walton, um jovem solitário com desejo de aventuras e conhecimento. A história é contada por meio das correspondências que ele envia para sua irmã, onde conta seu novo empreendimento: uma viagem até os confins do Norte. Por meio das cartas, acompanhamos o nascimento da vontade, a conquista da embarcação e de corajosos marinheiros, o começo de sua jornada e o momento em que Walton é duplamente surpreendido: primeiro, ao avistar um vulto monstruoso percorrendo a planície de gelo com um trenó de cachorros e, depois, ao resgatar um homem de feições tristes do frio extremo. Walton se afeiçoa ao estranho e, por fim, conta a sua irmã que transcrevera a história daquele pobre homem, Victor Frankenstein.
Frankenstein revela que foi um cientista ganancioso em sua juventude, cruzou fronteiras jamais exploradas pelo conhecimento humano e, em sua corrompida jornada, amaldiçoou o mundo com uma terrível criatura. Ao notar em Walton a mesma faísca que outrora acendera sua ambição, Frankenstein tece em seu relato diversos avisos sobre os perigos que o conhecimento desmedido traz.
Vida e morte pareciam para mim fronteiras ideias que deveria, primeiramente, transpor, despejando uma torrente de luz em nosso mundo sombrio. Uma nova espécie abençoar-me-ia como criador e origem; muitas personalidades felizes e excelentes deveriam a mim a própria existência. Nenhum pai poderia reivindicar a gratidão de seu filho de maneira tão completa quanto eu reivindicaria a deles. Após essas reflexões, pensei que se era capaz de animar matéria inerte, poderia, com o decorrer do tempo (embora agora eu creia impossível), restabelecer a vida onde a morte aparentemente entregou o corpo a corrupção [p. 69].
Nas advertências de Frankenstein, Mary Shelley constrói uma visão de dedicação ideal para a produção científica: nenhuma curiosidade que atrapalhe a fruição dos momentos que a natureza nos proporciona, como o belo verão perdido por Frankenstein, ou que afaste os entes queridos é saudável. A natureza é, inclusive, tratada em diversos momentos como apaziguadora das dores e é apreciada por aqueles espíritos puros.
Como já dito, a contemplação da natureza é sempre associada aos “dias felizes de outrora”. Para tratar disso, Shelley descreve em abundâncias as paisagens europeias e vemos, do meio para o fim do livro, um contraste construído entre Victor e seu amigo Clerval. Enquanto o primeiro é infeliz, perturbado e sente uma incapacidade para apreciar as paisagens naturais, o segundo é inocente, puro, admira os novos horizontes e é cheio de planos promissores para o futuro.
Em outro campo, ao tratar da criatura, o contato com o criador impuro e ganancioso é um molde para a identidade e guia as ações e reações do monstro ao longo do livro, mas nunca perdemos o vínculo que a criação proporciona para os dois: no momento em que a criatura tem em posse um amuleto com a foto da mãe de seu criador ela é tomada por um momento de extrema afeição e carinho pela mulher retratada.
Trabalhei com afinco por quase dois anos com o único propósito de infundir vida em um corpo inanimado. Para isso, privei-me do descanso e da saúde. Desejara esse projeto com um ardor que em muito excedia minha moderação; mas agora que terminara, a beleza do sonho se desvaneceu, e meu coração estava repleto de desgosto e horror [p. 75].
Se percebermos o livro da maneira proposta por Christopher Vogler em seu livro Jornada do Escritor, uma retomada dos estudos da psicologia de Jung, teríamos nos personagens do romance as diversas faces de uma mesma pessoa. Frankenstein, o Herói (ou o ego), trava uma luta intensa contra seu maior defeito, a personificação de sua ganância, a criatura, a Sombra (ou os sentimentos reprimidos, as culpas e remorsos). Como herói trágico, sua Sombra aniquila cada esfera da personalidade do cientista: a ligação com sua infância, com a natureza, com a sociedade, com o amor, com a família… Há um momento de recaída, quando Victor quase cede aos desejos do monstro.
[Spoiler Alert] Além disso, é pela sua vingança, sua luta contra a criação, que Frankenstein se mantém vivo: Criador e criatura morrem quase simultaneamente, dando espaço para o mais emblemático diálogo do livro: a criatura revela suas reais intenções, o pesar pela morte de Victor e pelos outros crimes que cometeu e se arrepende pela dedicação exclusiva para a vingança em sua nova vida, mas sentiu-se incapaz de tomar outro rumo.
É possível que criador e criatura só se fundiram sob o nome do Frankenstein devido à tão forte sintonia entre os dois. Tal relação já foi enfatizada pela escritora: ao citar a tradição germância dos Doppelgängers, dos seres que se transmutam em cópias idênticas de pessoas que passam a acompanhar, Shelley comentava sobre a forte conexão entre ambos. A analogia dos dois como um é possível até em nosso mundo. Relatos de cientistas que sentiram a invenção de monstros são contados algumas vezes: Eistein e a explosão da bomba atômica, Dumont e os aviões de guerra são apenas dois de diversos exemplos que podem ser citados.
Adeus! Deixo-o e, em ti, o último ser humano que estes olhos jamais contemplarão. Adeus, Frankenstein! Caso ainda estivesse vivo e acalentasse o desejo de vingar-se de mim, este seria mais bem saciado por minha vida do que por minha destruição. No entanto, não foi o caso. Buscou minha extinção, de modo que não causasse tanta miséria e, ainda assim, de uma maneira por mim desconhecida, não cessou de pensar e sentir, não desejou contra mim uma vingança maior do que aquela que sinto. Maldito como foi, minha agonia se mostrou ainda mais excelsa que a sua, pois o aguilhão amargo do remorso não deixará de inflamar-se em minhas chagas até que a morte as cure para sempre [p.226].
Contos
Por fim, a edição da Darkside também traz quatro contos escritos por Mary Shelley, selecionados sob a temática da Imortalidade. O primeiro deles é Valério: O Romano Reanimado, o relato ressentido de um romano reanimado que vê seu antigo império destruído e arruinado pelas modernidades. É o conto mais próximo de Frankenstein, temporal e estilisticamente, e traz mais uma vez à referência aos tempos antigos como tempos ideais e a modernidade como agente corruptor da sociedade.
O segundo conto, Roger Dodsworth: O Inglês Reanimado, foi escrito segundo uma fraude científica divulgada pelos jornais britânicos: um cavalheiro, congelado depois de uma avalanche, é reanimado. Assim como o poeta Thomas Moore e o jornalista William Cobbett, Mary Shelley também fez apontamentos e conjecturas sobre o suposto homem reanimado.
Transformação é o terceiro conto e o que mais dissona da temática da imortalidade. A narrativa trata de um jovem orgulhoso e irresponsável que, ao tentar reconquistar seu amor, aceita trocar de corpo com um anão deformado em troca de um baú de tesouros. O conto, que seria baseado em uma história do já citado Lorde Byron, também traz algumas ideias acerca dos doppelgänger.
Por fim, o último conto, O Imortal Mortal, retrata a história de um jovem assistente do alquimista Cornélio Agrippa, Winzy. Ao tentar apagar suas paixões juvenis, Winzy toma por acidente o elixir da vida eterna e sofre pelas consequências de sua imortalidade. Curiosamente, Agrippa realmente existiu na passagem do século XV pro XVI e é citado entre os estudiosos pesquisados por Victor Frankenstein.
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