Resenha: Confissões do Crematório, de Caitlin Doughty
Decomposição, finitude, rituais e autoconhecimento
Decomposição, finitude, rituais e autoconhecimento
Confissões do Crematório, de Caitlin Doughty (2016).
Darkside- 256p. R$49,90
Lançado no Brasil em 2016, Confissões do Crematório foi escrito pela agente funerária Caitlin Doughty. O livro, lançado no Brasil pela Darkside, conta alguns pontos da trajetória de sete anos na indústria da morte e é o primeiro título de não-ficção sob o selo DarkLove, linha dedicada ao trabalho de escritoras.
Alternando entre situações leves, pesadas, reflexões espirituais e momentos históricos, Caitlin retrata situações como a dificuldade de lidar com macas, a experiência de barbear um cadáver no primeiro dia de trabalho, a morte de bebês, os estágios de decomposição e a maneira como diferentes culturas realizam seus rituais de morte.
Logo nos primeiros capítulos do livro, Doughty nos apresenta a situação mais traumática que teve com a Sra. Morte. Foi o gatilho para seu interesse sobre a mortalidade. Aos oitos anos, enquanto passeava em um shopping de dois andares, Caitlin viu uma criança cair de um parapeito, dez metros em queda livre: “‘Meu bebê! Não, meu bebê!’, gritava a mãe dela, descendo pela escada rolante, empurrando violentamente as pessoas para o lado enquanto uma multidão se formava. Até hoje, nunca ouvi nada tão de outro mundo quanto os gritos daquela mulher. (…) Aquele baque, o barulho do corpo da garota batendo no laminado, se repetiria na minha mente sem parar, um baque surdo atrás do outro”.
A vivência da cena provocou nela sintomas de Stress Pós-Traumático e gerou Transtornos Obsessivos-Compulsivos, como babar a gola das camisetas ou dar cinco voltas na casa antes de alimentar o cachorro com um objetivo claro: avisar a Morte de que ela se importava com a vida que tinha. Foi a partir de reflexões sobre a cena que Doughty elaborou um plano: a criação de uma casa funerária chamada La Belle Mort, que transformaria velórios em uma coisa divertida e diminuiria o medo da morte que as pessoas têm.
É uma revisão de seu projeto, da La Belle Mort, e a intenção de reatar o contato saudável com a morte que guiam o livro. Um dos resultados que surgiram com sua maturidade foi o canal Ask A Mortician (Pergunte a um agente funerário, em tradução livre) no YouTube, onde responde dúvidas e conta dos bastidores da indústria da morte.
Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, é comum pensar que as questões da humanidade são as mesmas e que só as respostas mudam, de acordo com o tempo e o espaço. Mas não é assim. Viveiros de Castro comenta que o que distingue as culturas são quais questões elas colocam, como elas formulam e respondem isso. A visão da Morte não é a mesma e isso altera diversas estruturas. Vejamos um exemplo:
Em suas pesquisas com indígenas, Eduardo Viveiros de Castro notou que diversas tribos atribuem o motivo da mortalidade à um equívoco — um chamado que não deveria ser atendido e, no entanto, foi. Diferente da origem ocidental e cristã, das raízes pecaminosas e punitivas, a morte é uma questão de ignorância para algumas tribos.
Tanto por isso, as comunidades pesquisadas não têm medo da morte, mas medo dos mortos. Para eles, o morto é o contrário do humano. Morrer é transformar o humano em algo não-humano. É um ato de traição, deserção. Além disso, os mortos são rancorosos e solitários. Querem atrair os vivos para o seu lado: o luto e a saudade, por exemplo, são doenças que os falecidos jogam nos vivos. Os mortos, como qualquer outro ser vivo, têm alma, mas corpo deles é corrompido. Ele é um inimigo.
As diferenças que a explicação mítica sobre a mortalidade traz podem ser visíveis, por exemplo, na estrutura social. Nas sociedades ligadas aos cultos dos ancestrais, como a nossa, a morte não rompe a relação com os vivos. Os ancestrais servem como justificativa para distinção social. É fácil visualizar Montéquios e Capuletos, de Romeu e Julieta, dentro do esquema.
As tribos indígenas estudadas por Viveiros de Castro tem uma postura diferente em relação à isso, já que a morte rompe esse limite. Neste caso, as desavenças são dos vivos contra os mortos, enquanto, para nós, os conflitos surgem dos vivos e mortos de uma família contra os vivos e mortos de outra.
Mas quais os limites da influência da Morte sobre a vida?
É possível dizer que não há. Alguns pesquisadores, como Caitlin Doughty, acreditam que a relação com a finitude é o que cria e organiza as produções humanas — como as religiões, as artes, a filosofia. Atitudes diferentes para com a Morte geram resultados diferentes. Na nota do Confissões do Crematório, Doughty diz que “podemos nos esforçar para jogar a morte para escanteio, guardando cadáveres atrás de porta de aço inoxidável e enfiando os doentes e moribundos em quartos de hospital. Escondemos a morte com tanta habilidade que quase daria para acreditar que somos a primeira geração de imortais. Mas não somos. Vamos todos morrer e sabemos disso. Como o grande antropólogo cultural Ernest Becker disse: ‘A ideia da morte, o medo dela, assombra o animal humano como nenhuma outra coisa’. O medo da morte é o motivo de construirmos catedrais, de termos filhos, de declararmos guerras e de vermos vídeos de gatinhos na internet até às três da madrugada. A morte guia todos os impulsos criativos e destrutivos que temos como seres humanos. Quanto mais perto chegamos de entendê-la, mais perto chegamos de entender a nós mesmos”.
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No entanto, o medo da morte fixado nas sociedades ocidentais eliminou qualquer contato com nossa perenidade e esterilizou reflexões de autoconhecimento. Em seu livro, Dougthy afirma que o lembrete da “nossa falibilidade é benéfico, e há muito a se ganhar com o retorno da exposição responsável à decomposição”.
“Historicamente, monges budistas com esperanças de se desligarem da luxúria e de reprimirem o desejo de permanência meditavam sobre a forma de um cadáver apodrecendo. Conhecida como as nove contemplações do cemitério, a meditação se concentrava nos diferentes estágios de decomposição: ‘(1) distensão (choso); (2) ruptura (kaiso); (3) exsudação de sangue (ketsuzuso); (4) putrefação (noranso); (5) descoloração e dissecação (seioso); (6) consumo por animais e pássaros (lanso); (7) desmembramento (sanso); (8) ossos (kosso); e (9) ressequido até o pó (shoso)’ “— p. 169
O processo de isolamento da sociedade com os mortos é descrito em três etapas: 1. No fim da Idade Média, os vitrais da Dança Macabra marcavam um amor à vida e o fim da consciência de individualidade dos sujeitos. Ele aproximava a morte das pessoas. Em Paris, por exemplo, depois de um tempo enterrados, os ossos eram retirados e expostos em praça pública. Aos poucos, essa proximidade com os corpos foi vista como hostil. Um dos motivos era o cristianismo e a supervalorização da vida; 2. Entre os séculos XVI e XVIII, as imagens da morte a tradição e a familiaridade entre morte e homem, devido ao erotismo e à alienação da ideia de morrer; 3. Por fim, a partir do século XIX, as imagens da morte são cada vez mais raras e o medo da morte começa a se enraizar na sociedade ocidental.
Desde a virada para o século XX há, então, um silêncio total e a morte se tornou uma força selvagem e incompreensível.
“Às vezes, penso em como minha infância teria sido diferente se eu tivesse sido apresentada diretamente à morte. Sido obrigada a conviver com a presença dela, apertar sua mão. Ouvido que ela seria uma companheira íntima, que influenciaria todos os meus gestos e todas as minhas decisões, sussurrando ‘Você é comida de larva’ no meu ouvido. Talvez ela tivesse se tornado minha amiga” — p.48
No caso da sociedade estadunidense, Caitlin aponta a Guerra de Secessão como um ponto de destaque na história da morte no país. Devido ao grande número de mortos e o contato com entes decompostos, os agentes funerários transformaram os cadáveres em produtos, aumentaram a procura pelos embalsamamentos e contribuíram para o esvaziamento simbólico dos rituais da morte nos EUA. Segundo a escritora, “os norte-americanos praticam o embalsamamento, mas não acreditam nele. Não é um ritual que nos traz consolo; é uma cobrança adicional de 900 dólares na conta da funerária”.
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Da Guerra de Secessão até meados do século XX, os agentes funerários lucraram muito, profissionalizaram o campo e popularizaram exibições artísticas dos corpos mortos. Porém, no início de 1960, as pessoas passaram a desconfiar dos altos preços cobrados pelas funerárias, afirmando que os agentes eram ‘charlatões inescrupulosos tirando vantagem de famílias em sofrimento’. O movimento, liderado por Jéssica Mitford, modificou a sociedade estadunidense e os tratamentos dado para os cadáveres, aumentando o número de cremações feitas ao ponto de, segundo Doughty, as previsões serem de que 50% da população dos EUA será cremada na próxima década.
“Jessica Mitford não estava tentando melhorar nosso relacionamento com a morte, estava tentando melhorar nosso relacionamento com o preço no varejo. Foi aí que ela errou. A indústria funerária estava roubando a morte do público, não o dinheiro. A interação realista com a morte e a chance de encarar a própria mortalidade. Apesar das boas intenções de Mitford, a cremação direta só piorou a situação” — p.121
Ao criticar a postura dos embalsamadores e de Jessica Mitford, Caitlin comenta que “o que precisávamos não eram mais acréscimos à lista infinita de opções de mercadoria. Não quando faltavam rituais de significados verdadeiro, rituais envolvendo o corpo, a família, as emoções. Rituais que não podiam ser substituídos pelo poder de compra”. Assim, vamos descobrindo, ao mesmo tempo que a narradora, quais são os objetivos que ela resolve adotar como plano de vida.
Criar sua Arte de Morrer Bem e ter autonomia sobre a própria morte é um dos objetivos de Caitlin. Além disso, ela busca reatar a espiritualidade nos rituais da morte e possibilitar essa experiência para outras pessoas. Segundo a escritora, “um cadáver não precisa que você se lembre dele. Na verdade, não precisa de mais nada — fica mais do que satisfeito de ficar ali, deitado, apodrecendo. É você que precisa do cadáver. Ao olhar para o corpo, você entende que a pessoa se foi, que não é mais uma participante ativa do jogo da vida. Ao olhar para o corpo, você se vê nele e sabe que também vai morrer. O contato visual é uma chamada à autopercepção. É o começo da sabedoria”.
O começo de sua busca pela sabedoria pode começar pelo Confissões do Crematório. O fim da palestra, citada no começo da resenha, a fala de Eduardo Viveiros de Castro pode nos ajudar. Ele comenta que a morte só pode ser tocada por meio de narrativas ou situações de quase-morte — já que só se sabe da Morte quando se morre. Este contato é provocador de transformações potenciais e aprimora a nossa experiência enquanto seres vivos. É a busca pela autopercepção de Doughty. Caitlin não só nos mostra as transformações que viveu em relação às suas experiências de quase-morte, no sentido de Viveiros de Castro, como apresenta possibilidades de você, leitor, dar seus primeiros passos.
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