Resenha: A Trama da Vida, de Merlin Sheldrake
Livro apresenta formas de compreender a vida fúngica fora do lugar exótico e antropocêntrico e evidencia os limites linguísticos da…
Livro apresenta formas de compreender a vida fúngica fora do lugar exótico e antropocêntrico e evidencia os limites linguísticos da empreitada
Fungos sempre encontram uma forma de crescer. Nos últimos anos, saltaram de pães velhos e madeiras apodrecidas para esporular dentro das mentes. As frutificações foram várias: na Netflix, o documentário Fungos Fantásticos apresentou a história de Paul Stamets e a biologia dos fungos; Michael Pollan falou sobre cogumelos psicodélicos em Como mudar sua mente; ou Anna Tsing, com o O cogumelo no fim do mundo (ainda sem tradução), popularizando a etnomicologia.
Por aqui, é crescente a discussão sobre uso de cogumelos silvestres nativos em restaurantes e fungos alimentícios não-convencionais. Até a Festa Literária Internacional de Paraty de 2021 contou com uma mesa intitulada ‘Micélios’, com a presença do pesquisador Jorge Ferreira e de Merlin Sheldrake, escritor de A trama da vida.
Não descarto a possibilidade da percepção crescente ser um viés pessoal. Afinal, também fui contaminado. No último semestre, comecei a newsletter Ponto Nemo. Organizada em temporadas temáticas, dediquei aos fungos a primeira coletânea. No último episódio, entrevistei o antropólogo Yama Chiodi e falamos sobre as possibilidades epistemológicas e narrativas a partir dos fungos.
Yama corroborou minha impressão. De fato, estamos mais atentos às existências micológicas — mas, não necessariamente, mais abertos. Ele critica o tom de fascinação pela forma de existência fúngica, um processo que nos distancia pela exotização e nos mantém antropocentrados.
O que o pesquisador ressalta é a necessidade de ser verdadeiramente tocado pelas possibilidades ontológicas dos fungos, tentarmos compreender nossa forma de vida por outro viés, outra lupa: são formas de vida menos horizontais, que crescem nas ruínas do capitalismo (pegando emprestado o subtítulo do livro de Tsing) e que oferecem possibilidades para pensarmos o fim do mundo — pelo menos, o nosso.
Em A Trama da Vida: como os fungos constroem o mundo, Merlin Sheldrake briga com a linguagem para apresentar as formas fúngicas em uma postura de respeito interespécie. Buscando metáforas, lutando contra antropomorfização, ilusões de agenciamento e imagens reducionistas, o pesquisador procura novas imagens e conceitos para apresentar um complexo de uma outra forma de vida, caminhando por relatos pessoais, pesquisas científicas e discussões filosóficas e linguísticas.
Traduzido por Gilberto Stam e publicado pelas editoras Ubu e Fósforo, o livro já ganhou diversos prêmios, incluindo o da Royal Society Science Book Prize. Como destacado nas resenhas do The Guardian e do Los Angeles Review of Books, a obra apresenta como formas de vida se conectam e influenciam de maneira contínua, de forma que percebemos que a humanidade não é especial ou dominante, mas apenas um pontinho numa rede de conexões que é a vida — e, como escrito por Joanna Steinhardt, é “um chamado para se envolver com os fungos no patamar deles”.
Merlin Sheldrake tem, na pilha de compostagem que observa em casa durante a infância, um marco para o início de sua curiosidade no reino fúngico. No epílogo, descreve o fascínio que sentiu ao visualizar o processo de decomposição e compreender o processo oposto ao das coisas que via:
Agora havia flechas que apontavam em ambas as direções ao mesmo tempo. Compositores fazem; decompositores desfazem. E, a menos que decompositores desfaçam, não há o que os compositores possam fazer. Essa ideia mudou minha maneira de entender o mundo. E desse pensamento, da minha atração pelas criaturas que fazem a decomposição, surgiu meu interesse pelos fungos.
Dessa pulguinha, não só nasceu seu doutorado em ecologia tropical na Universidade de Cambridge, onde se especializou em fungos que vivem nas raízes das árvores das florestas tropicais do Panamá, mas a pulsão que o guiou até a escrita de A Trama da Vida.
No livro, Sheldrake nos guia por um caminho que evidencia a importância dos fungos no início e fim dos ciclos. Interessante relacionar o trabalho dele com o da Anna Tsing. No texto Margens Indomáveis: cogumelos como espécies companheiras, Tsing escreve que “cogumelos são bem conhecidos como companheiros”, já que “o conceito de ‘simbiose’ — convivência interespecífica mutuamente benéfica — foi inventado para o líquen, uma associação de um fungo com uma alga ou com uma cianobactéria”.
Fungos são essenciais para outros tipos de seres. 90% das plantas terrestres só podem sobreviver por causa do envio de nutrientes ou da germinação causada pelos fungos. Fungos quebram pedras e distribuem os minerais, permitindo o nascimento das plantas em espaços onde ainda não há solo fértil — fungos foram as primeiras raízes das plantas e, graças a eles, elas conseguiram sair do ambiente aquático.
Mas parte do nosso temor subconsciente é justificável. Tsing escreve que nem toda presença fúngica é benigna já que são “assustadoramente onívoros em seus hábitos de conversão de carbono”. Os fungos sobrevivem em animais vivos ou mortos. No nosso corpo, podem ser parasitas incômodos — e até nos matar. Alguns se alimentam de combustível de avião, devoram madeira de navios em alto-mar, radiação, plástico, enfim… como diz Tsing, “os apetites fúngicos são sempre ambivalentes em sua benevolência”.
Sheldrake aproveita o simbolismo e faz disso um rito. Quando terminou o livro, deu duas cópias de alimento aos fungos. De um, brotou cogumelos-ostra. De outro, acrescentou açúcar e levedura para fazer cerveja. Por fim, comeu e bebeu. Parte do processo está descrito no livro (outra parte foi filmada e disponibilizada no Twitter):
Os fungos podem gerar cogumelos, mas primeiro devem desfazer outra coisa. Agora que este livro está feito, posso entregá-lo aos fungos para que o desfaçam. Vou umedecer uma cópia e semear com micélio Pleurotus. Quando ele tiver comido palavras, páginas e orelhas, e cogumelos-ostra tiveram nascido da capa, eu os comerei. De outra cópia, vou remover as páginas, amassá-las e, com um ácido fraco, quebrar a celulose do papel em açúcares. À solução de açúcar adicionarei uma levedura. Depois de fazer cerveja por fermentação, vou beber e fechar o ciclo.
Ao longo da narrativa do livro, Merlin nos apresenta a complexidade dos fungos em diversas frentes: nas trufas e o universo químico dos fungos e suas hifas; na vida inteligente dos micélios que conseguem resolver labirintos e guardar informações; nas simbioses e nos líquens; na influência dos cogumelos nas mentes, seja pelos fungos-zumbi ou dos cogumelos psicodélicos; na importância dos fungos nas raízes das plantas e as conexões que eles criam nas florestas; nos movimentos horizontais e artesanais de pessoas que querem aprender com os fungos; e nas limitações da linguagem, com nossa incapacidade de se aproximar de uma forma de vida tão diferente e as consequentes problemáticas na interpretação, numa linha tênue entre a antropomorfização e a simplificação excessiva.
Em sua resenha para o Los Angeles Review of Books, Joanna Steinhardt destaca alguns questionamentos:
As questões subjacente de A Trama da Vida, e de outras mídias micófilas atuais, são: Como podemos ser mais como fungos? Como nós já somos como fungos? Como podemos, como Paul Stamets colocou, nos aliar com o reino fúngico? Como podemos nos micologizar e micologizar nosso mundo? Como podemos quebrar nosso desperdício de combustível e alimento, ao invés de deixar ele se acumular em lixeiras, oceanos e corrente sanguínea? Como podemos nos organizar flexível e responsavelmente para que cada parte da nossa rede social consiga o que precisa? Se nós falharmos e nossa própria espécie não sobreviver aos próximos séculos, nós podemos ao menos confiar que a espécie resiliente dos fungos vai evoluir para consumir as copiosas ruínas da nossa civilização e renovar o planeta de novo.
As ruínas são uma figura de destaque nas poéticas do fungo. Como destacado no subtítulo do livro de Anna Tsing, podemos visualizar nessas existências as possibilidades de sobrevivência nas ruínas do capitalismo — uma maneira de perceber que escombros não são narrativas de um progresso civilizatório que deu errado, mas um espaço fértil para novas possibilidades. Os fungos mostram que estamos unidos e somos interdependentes. Não somos indivíduos, mas líquens. Precisamos de colaboração. Se não a tivermos, conheceremos o fim do mundo que prevemos como o fim do nosso mundo.
Obrigado por ler até aqui!
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