Originalmente publicado na Faísca: Temporada 1, Episódio 22 (2019)
Sabe os vômitos em que você pisa no trem ou vê nas paredes pela rua? Aqueles que emanam um cheiro azedo, que fedem a álcool, comida podre e ácido gástrico, e que faz você pensar “quem foi o filho da puta?” enquanto sente ânsia? É meu… e também dos milhares dos “pau no cu” que ficam pela cidade tirando o brilho do seu caminho. A gente enche a cara com o que dá na telha, somos os que você finge não ver enquanto anda por aí, puxando um assunto bosta com seu filho esperando que ele não me perceba — enquanto você pensa: “Se meu filho ficar assim, eu arrebento”.
Eu era só mais um desses aí… Não enchia o saco de ninguém, e o mínimo que eu esperava era que fosse recíproco. A gente andava em grupo, sempre com os nossos — que não eram sempre os mesmos, mas eram sempre nossos. Alguns voltavam pras mamães, outros traziam gente nova, e tinha ainda os troca-troca, que ficavam alternando entre os grupos de perdidos. O normal era desaparecer por um tempo e voltar depois com grana, comida ou drogas.
As rotinas eram as mesmas: de tarde, cada um ia atrás de um bico que pudesse render alguma coisa; de noite, a gente chapava com o que estivesse por ali; as madrugadas e manhãs serviam para dormir, curar qualquer efeito colateral e recomeçar o ciclo.
Obviamente, a gente não tomava conta de criança, levava cachorro pra passear ou gerenciava lojas. A gente fazia serviço de viciadinho, como entregar umas coisas e dar uns sustos por aí. Num dia desses, alguém — talvez o Tom ou o Lucca, mas foda-se, alguém — conseguiu um bico pro pessoal, dos bons. Eles encontraram uns pesquisadores, tipo aqueles cientistas malucos que usam cobaias, e os caras faziam testes com ácidos e precisavam de voluntários para testarem os efeitos daquilo. Ironicamente, chamaram a gente para um tal de um “grupo de controle”.
O esquema era: toda segunda era sessão cinema. Às oito da manhã a gente via filmes sob efeito do que tinham fabricado e o que eles queriam era só saber o que a gente sentia enquanto as coisas passavam na tela. Levavam a gente pruma sala de cinema pequena, davam uma espécie pirulito especial que soltava um líquido gosmento na língua, e aí a gente se sentia num cinema estilo 4D e o cacete. Tudo isso com uns fios grudados na cabeça. Segundo um dos caras, eles queriam “experimentar os limites da nossa percepção fisicotemporal”.
Não sei como aquilo funcionava, mas era foda: assim que você chupava o negócio, a boca ardia. Depois de um tempo a cabeça começava a apertar, e quando você achava que já ia sentir os miolos escorrendo pelo ouvido, BAM! Você tava dentro do filme: não tinha câmera, não tinha sala. Era só você dentro do filme, como um fantasma. Além disso, os filmes eram curtos e meio bizarros. Uns pássaros voando e cagando, olhos cortados, árvores, neve, monólogos viajados. Devia ser daqueles filmes que o pessoal chama de arte. Ficamos meses nessa mesma merda.
O segredo para fazer um grupo de moleques irresponsáveis continuarem indo pro mesmo lugar era simples: a gente ganhava o bastante pro resto da semana enquanto ficava louco, então foda-se.
O problema foi quando, num desses dias, a viagem foi diferente. O clipezinho parecia ser a mesma coisa desconexa e bizarra de sempre. Umas imagens escuras piscavam: cidades, casas, crianças sozinhas balançando um berço vazio, florestas, vultos, milhares de pessoas na rua.
O ritual parecia o mesmo. Trouxeram o pirulitão, a gente colocou na boca até ele gozar todo o ácido. Quando melecou, já estávamos esperando a ardência… BUM! Ela veio. Senti minha língua queimando e inchando. Os olhos ardiam. Tinham trocado minha língua por um naco de pimenta alucinógena… Foi quando veio a dor de cabeça… apertando e espetando… antes que minha ridícula massa cerebral se tornasse uma ameba, eu tirei o negócio da boca. Que ideia de merda… Além do choque que tomei na língua inchada e outra puta pontada na cabeça, o filme deu algum tipo de erro.
O filme travou, distorceu e ficou muito acelerado. Recoloquei o negócio na boca. Não adiantou porra nenhuma. Tirar deve estragar os efeitos, sei lá. Uma sensação de desespero preencheu cada pedaço meu corpo.
Eu vi o correr de semanas em poucos segundos. A silhueta da cidade se modificava enquanto o movimento das pessoas permanecia o mesmo. Os granulados do filme eram substituídos por bits, as fachadas tinham letreiros luminosos em neon, as pessoas, quase todas velhas, disputavam espaços com robôs, os carros deixavam de ter motoristas. Até que tudo começou a esvaziar. As pessoas sumiram das ruas, os robôs, sem ter a quem servir, foram desativados.
A paisagem se transformou em um campo vazio de concreto e aço, tomado pelo que restava da natureza, mas ela também foi desintegrada. A chuva, o fogo, os terremotos e as ventanias transformaram o mundo em cinzas, que nevava por aí. Quando toda a poeira assentou, do lugar todo fodido e podre de morte, plantas começaram a nascer. De maneira muito rápida, vi surgirem musgos, árvores, arbustos, frutas; surgiram peixes, sapos, cobras, pássaros, macacos… e gente. Não eram como nós. Eram mais baixos, arredondados e tinham na pele a tonalidade das cinzas, mas eram gente. Eu vi eles descobrindo ferramentas, construindo civilizações, guerreando e matando. Logo, eles tinham cidades quase como as nossas.
A última coisa vi foi um deles saindo bêbado de um boteco sujo. Aquele ser se virou e olhou para mim, bem no fundo dos meus olhos. Era eu; com o corpo diferente, adaptado pra configuração daquela espécie. Mas era eu. Ele balbuciou alguma coisa que não entendi e ergueu a mão para tentar me alcançar.
Nesse momento, a tela ficou preta. Depois do incidente, o programa foi encerrado.
Desde então, é só nisso que penso. Deve ser lindo ver tudo cair.
Obrigado por ler até aqui!
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