O paradoxo da Newsletter de Teseu, ‘S.’ & outras coisas
Aos poucos, fui devorado pelos fungos. Absorvidos pelas hifas, estou fragmentado entre micélios & crescendo desordenadamente em todas as direções. Mas os sinais químicos apitam: é preciso frutificar.
É estranho voltar a escrever depois do fim da temporada… a produção dos episódios foi imersiva demais. É preciso dar tempo para os olhos se acostumarem com a luz depois de rastejar para fora do solo. Mas, sigo tateando.
Entre os toques , consegui lançar um financiamento coletivo recorrente para a manutenção da Ponto Nemo (não sem a ajuda e o incentivo de muitas pessoas, então: obrigado!). Além do custo de produção, pesquisa, entrevista e escrita, gostaria de registrar a primeira temporada em um ebook ilustrado, com os textos ampliados e revisados.
Para os que apoiarem a partir da faixa promocional de R$10 (que fica até o lançamento da próxima edição), o livro está garantido — e com lançamento antecipado e todas as atualizações em primeira mão.
Além disso, como combinado no ano passado, publiquei a resenha de A Trama da Vida, de Merlin Sheldrake. Recebi um retorno positivo da editora e, também, consegui um cupom de 20% para os leitores da Ponto Nemo. Quem se interessar, pode acessar o site da Ubu e usar o cupom PONTONEMO. Está disponível até o dia 17 de abril.
Enquanto isso, vamos sentindo as mudanças de textura. Aos poucos, os grãos de areia grudam nas pegadas úmidas que a terra deixou nos nossos pés. A maresia substitui o cheiro de mata. Subimos em um navio, sem saber se foi o mesmo que nos trouxe até aqui.
O Navio de Teseu
Durante o planejamento dos rumos da Ponto Nemo, a imagem do paradoxo do Navio de Teseu apareceu com força — também pela leitura de S.: O Navio de Teseu, de J.J. Abrams e Doug Dorst, mas falaremos dele depois.
Agora, nos importa pensar como paradoxos são expressões, numéricas ou verbais, que carregam contradições internas — quase como um quadro do M.C. Escher por escrito. Em específico, o paradoxo do Navio de Teseu lida com problemas da metafísica da identidade, questões já discutidas por filósofos como Heráclito e Platão.
A formulação do problema enquanto “Navio de Teseu” é registrada pela primeira vez por Plutarco, em Vidas Paralelas. Teseu foi um cara importante na mitologia grega, bastante conhecido por ter derrotado o Minotauro no labirinto de Creta — uma criatura que se alimentava de rapazes e moças atenienses, dados em tributo pelo rei de Creta — com a ajuda de Ariadne e seu fio.
Plutarco adota a figura do herói para propor o seguinte questionamento: o Navio do Teseu parte de uma costa rumo a outro destino em uma viagem de 50 anos. Ao longo do caminho, os materiais se desgastam e são trocados por instalações novas — até que o navio seja completamente renovado, peça por peça. Sendo assim, é possível dizer que o navio que saiu é o mesmo que chegou?
Muitos anos depois, Thomas Hobbes ainda acrescentou outra questão ao problema: e se um segundo barco fosse montado com as peças jogadas fora, qual dos dois seria considerado o Navio de Teseu? (e, aliás, por que precisaríamos considerar a existência de apenas um Navio de Teseu?).
Claro que, pelo papel que a filosofia grega tem na formação do pensamento ocidental, essa é a versão mais conhecida do dilema por aqui — mas existem outras interpretações. Encontrei um antigo texto budista intitulado, em sânscrito, Mahāprajñāpāramitopadeśa (em tradução livre, algo como Grande Instrução sobre a Perfeição da Sabedoria. O texto seria traduzido para o chinês clássico como Dà zhìdù lùn/大智度論). Ali, o problema da identidade toma forma em uma história com demônios e troca de corpos.
De acordo com a tradução feita por uma dupla de pesquisadores, a história pode ser lida assim:
…Há momentos em que as pessoas concebem um Eu em outros corpos. Por exemplo, havia um homem que foi enviado para longe como um emissário. Ele passou a noite sozinho em uma casa vazia. Durante a noite, um demônio entrou na casa carregando um corpo e o colocou na frente dele, e então veio outro demônio em perseguição, gritando furiosamente para o primeiro demônio: “Esse corpo é meu. Por que você o carregou até aqui?”. O primeiro demônio respondeu: “É claro que eu o carreguei até aqui porque ele é minha propriedade”. Mas o segundo demônio disse: “Fui eu que carreguei este homem morto aqui!”. Então, os dois demônios lutaram pelo corpo, cada um agarrando uma mão. O primeiro demônio disse: “Tem um homem aqui a quem podemos perguntar”. Então, o segundo demônio perguntou imediatamente: “Quem carregou esse morto até aqui?”. Esse homem pensou: “Esses dois demônios são poderosos. Se eu contar a verdade, vou morrer; mas se eu mentir, ainda vou morrer. Eu não posso escapar da morte, então por que eu mentiria?”. Então, ele disse [para o segundo demônio]: “[O corpo] foi carregado para dentro pelo primeiro demônio”. O segundo demônio ficou terrivelmente furioso. Ele agarrou o homem pela mão, arrancou um braço do seu corpo e o jogou no chão. O primeiro demônio, então, pegou o braço do morto e imediatamente o prendeu no homem com um tapa. Dessa forma, seus dois braços, seus dois pés, sua cabeça, os dois lados e, no fim, todo o seu corpo foi substituído. Os dois demônios então devoraram juntos o corpo que foi substituído, limparam suas bocas e partiram. Esse homem pensou: “Eu vi o corpo que nasceu da minha mãe ser comido por dois demônios. Agora, esse meu corpo consiste completamente da carne de outra pessoa. Agora eu realmente tenho um corpo? Ou eu não tenho corpo? Se penso que tenho um corpo, o que eu tenho é completamente o corpo de outra pessoa; se penso que não tenho corpo, agora realmente tenho um corpo”. Pensando assim, confundiu seu coração e ficou como um homem louco.
Ao retornar para sua terra, o viajante conversa com os monges sobre sua incerteza de ainda ser uma pessoa. Os monges lhe dizem que o corpo nunca teve um Eu, mas é a combinação dos quatro grandes elementos que o concebiam dessa forma. Sendo assim, o corpo original e o atual do viajante seriam iguais, e o Eu, inexistente.
Como todo bom paradoxo, é menos interessante a conclusão do que as possibilidades de reflexão. Eu gosto das linhas de pensamento que enfatizam uma dimensão esquecida na equação: o tempo.
Heráclito, por exemplo, pressupõe constância da fluidez na identidade: “Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”. Mesmo que o Navio de Teseu não trocasse seus pedaços, será que as tábuas que saíram do porto seriam as mesmas a chegar? Teriam novas marcas de desgaste, o registro das pegadas dos tripulantes, a história dos pássaros e peixes que encostaram ali? Será que o navio, e todas as coisas, não são apenas instantâneos?
Navios-Corpos de Teseu
Bom… depois de pensar um pouco sobre isso, ignorei todas as premissas de que o paradoxo se refere principalmente às questões filosóficas e linguísticas; que são complexas as definições da identidade — tanto de pessoas quanto de objetos; que é improvável a definição científica do paradoxo do Navio de Teseu; e transformei a dúvida numa questão científica: será que temos alguma base material para nos enxergar como um Navio-Corpo de Teseu?
O canal NPR’s Skunk Bear publicou um vídeo respondendo “Qual a idade verdadeira do nosso corpo?” (e o vídeo é ótimo para pessoas visuais. Inclusive, você pode ativar a legenda em português) e explicou sobre os processos de regeneração do corpo — e vale ressaltar que, em primeiro lugar, que é um mito a ideia de que em 7 ou 10 anos você é um novo você.
Mas vamos lá: de fato, nosso corpo se renova relativamente rápido. Unhas, por exemplo, são totalmente novas a cada seis meses, mais ou menos — e basta só um mês para a pele passar pelo mesmo processo. A cada quatro meses você tem um estoque renovado de glóbulos vermelhos no sangue, mas a manutenção é diária.
Algumas partes demoram mais tempo: você só tem um novo esqueleto a cada dez anos. Já os músculos demoram 15 anos para serem renovados — mas não todos. Os do coração, por exemplo, se renovam em um ritmo tão vagaroso que, até o fim da vida, metade deles ainda serão de fábrica. Os neurônios são assim: grande parte já está lá & com a gente permanece, sem direito a trocas. Células capilares, também. Isso, sem levar em consideração a posição antropocêntrica da visualização do esquema, já que diversos seres usam nosso corpo de habitat e passam pelos seus próprios ciclos.
O que surgiu de curioso é que algumas coisas já estão mortas (ou vivas de uma forma bem diferente) logo quando nascemos. Os três menores ossos do corpo humano, os ossículos do ouvido — a bigorna, o martelo e o estribo. Responsáveis pela audição humana, eles não podem ter nenhum tipo de líquido para que o ar e as ondas sonoras possam reverberar. Para isso funcionar, eles já estão completos no momento em que nascemos e, assim, não têm nenhuma conexão sanguínea e se tornam leves e secos.
Um artigo da Scientific American explica o processo de formação do cristalino: conhecido como a lente dos olhos, é através dele que a luz passa e nos permite a visão. Mas a transparência é uma coisa difícil na natureza. Nós vemos coisas translúcidas, como algumas asas de insetos ou águas-vivas… mas transparentes?
A formação do cristalino passa por um processo de suicídio de organelas (inclusive do núcleo da célula, onde fica o material genético). Para adquirir a transparência, o cristalino é formado quando nascemos e, depois, ele despreza as partes internas das suas células e as conexões nervosas e sanguíneas. Ele se torna uma casca, quase vazia. O artigo chega a perguntar “essa parte do corpo poderia ser considerada viva? Depende do que você considera vida”.
Ele define o cristalino como “um cristal biológico - isto é, tem um arranjo muito regular de células. Cada célula contém grandes moléculas – proteínas cristalinas – que formam complexos com arranjos paracristalinos. Essa construção torna o citoplasma opticamente homogêneo; o índice de refração não muda dentro da célula ou de uma célula para outra”.
Por fim, o esmalte do nosso dente é acelular e é o tecido mais mineralizado do nosso corpo (cerca de 90% dele é formado por minerais como zinco e cobre e os outros 10%, de água e materiais orgânicos).
Partes como essas, que se mantém as mesmas, poderiam guardar o segredo do Navio-Corpo de Teseu, mas… e se aumentássemos o zoom na equação? Porque, mesmo as células que não se regeneram ainda absorvem novos nutrientes e desprezam partes velhas. Se pensarmos a nível atômico, as partes que não estão se regenerando estão, ao menos, sendo substituídas.
Como me explicou Thiago Ambrósio Lage, um amigo, escritor & doutor em biotecnologia, “a célula vai estar sempre se renovando. Mesmo que não se reproduza, ela não é uma entidade estática. Ela está sempre sendo consertada com novos materiais. É como se você morasse numa casa que está sempre em obras — a casa está lá o tempo todo, mas com partes sendo trocadas.”.
Uma possível exceção é o material genético. Sempre que uma célula se replica, o DNA presente nela é duplicado com a síntese de uma nova cópia. Além disso, mesmo sem a replicação, o DNA também pode passar por processos de reparação para corrigir eventuais defeitos. A questão é que, como a ocorrência de danos e o processo de reparação são incertos, é provável que uma parcela do DNA dessas células seja o mesmo desde seu nascimento.
… e o que tudo isso significa?
Provavelmente, nada. Afinal, o caminho do paradoxo é a reflexão, e não a conclusão. Até porque, é difícil saber: o que somos nós, no esquema do Navio-Corpo de Teseu? Corpo, mente, átomos, DNA ou consciência?
Talvez, sejamos como o Navio de Teseu: uma concepção paradoxal construída sob a (ingênua) certeza de que várias partes podem constituir um todo; de que é possível que as coisas tenham identidade e que sejamos indivíduos. Talvez, a gente não passe de uma receita; a diretriz de uma casa em uma vasta e eterna reforma.
'S. — O Navio de Teseu'
S. — O Navio de Teseu, de J.J. Abrams e Doug Dorst, foi parcialmente responsável por me levar no caminho dessa reflexão. O livro não conta uma, mas várias histórias: Acompanhamos S., um homem sem memória em busca da sua identidade e dividido entre o amor por Sola e o dever conspiratório; também vemos F.X. Caldeira e V.M. Straka tentando se relacionar e encontrar seus lugares no mundo; e, por fim, Eric e Jen descobrindo afetos, amadurecendo as vidas acadêmicas e resolvendo problemas pessoais.
Cada uma dessas camadas lida com problemas sobre a identidade e os relaciona diretamente com a literatura. Para os personagens, a leitura, a escrita e a tradução são formas de existência no mundo: suas identidades mudam a vida & o texto.
Além disso, o livro retoma a imagem de Teseu não só pelo Navio, mas pela narrativa labiríntica. Simbolicamente, o labirinto pode remeter à busca interior do Eu (como na série Westworld). Mas além disso, o labirinto é um artifício festivo que mede a astúcia daquele que entra em um jogo dinâmico e exploratório. Não há uma visão global, o labirinto é construído à medida que é percorrido.
Assim são as nossas identidades: vivemos na constância da trajetória, do transitório — não estamos na conclusão de quem somos, já que o fim é sempre o mesmo. De qualquer forma, se quiser ler um pouco mais sobre o livro, escrevi uma resenha no Estantário (e se você se preocupa com isso, juro que não tem spoilers).
Obrigado por ler até aqui!
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Nos últimos dias, eu:
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Publiquei o financiamento coletivo da Ponto Nemo;
Escrevi a resenha de A Trama da vida, de Merlin Sheldrake;
Escrevi a resenha de S. — O Navio de Teseu, de J.J. Abrams e Doug Dorst.