O Cemitério — Stephen King (diálogo)
Pedro: Gostei muito da escolha dos personagens n’O cemitério. Tudo foi friamente calculado para dar vazão à exploração máxima do tema…
Pedro: Gostei muito da escolha dos personagens n’O cemitério. Tudo foi friamente calculado para dar vazão à exploração máxima do tema “morte”. Começa pelo Louis, um médico, que entende a morte de maneira mais racional e fria. Rachel, que tem uma experiência traumatizante com morte na infância, pensa o oposto, a morte para ela é um tabu (Rachel é um reflexo da sociedade latina, que vê a morte como algo abominável). Existem também Jud e Norma, dois velhos que veem a morte com a naturalidade de quem já viveu demais e está fazendo hora extra neste mundo. Já Ellie é uma criança que nunca entrou em contato com a morte, curiosa, que é obrigada a passar por poucas e boas em tão pouco tempo. Junta tudo isso numa salada e você tem muito pano pra manga para explorar o tema ao máximo!
Sandra: Que sacada genial! Eu nunca tinha observado por este ângulo, via apenas o encontro dos personagens, compostos basicamente por duas famílias que tinham que passar por essas coisas.
Arthur: Cara, eu senti a mesma coisa. Dei uma olhada numa palestra que falava sobre “a morte como instante de vida”. Consegui desenhar isso muito claro na mente. Ainda vi que as religiões pagãs tinham na morte uma coisa sagrada. Então um terreno sagrado era onde os parentes estavam enterrados, tipo o cemitério, sabe? Acho que uma sacada boa do livro é que ele confronta TODAS essas visões: a científica, a cristã, a pagã, a de quem já viu isso várias vezes e quem não passou nada e mostra como, mesmo assim, a morte segue sendo um mistério. Vou até pegar um texto que ela usa para mostrar…
Pedro: Isso até que fica bem claro no início do livro né? “A morte é um mistério. O sepultamento, um segredo”.
A Morte Não É Nada Para Nós
Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma idéia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la.
Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais.
Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais. Mas o vulgo, ou a teme como o pior dos males, ou a deseja como termo para os males da vida. O sábio não teme a morte, a vida não lhe é nenhum fardo, nem ele crê que seja um mal não mais existir. Assim como não é a abundância dos manjares, mas a sua qualidade, que nos delicia, assim também não é a longa duração da vida, mas seu encanto, que nos apraz. Quanto aos que aconselham os jovens a viverem bem, e os velhos a bem morrerem, são uns ingénuos, não apenas porque a vida tem encanto mesmo para os velhos, como porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um único e mesmo cuidado.
Epicuro, in A Conduta na Vida
Pedro: Talvez esteja falando besteira, mas, como as civilizações mais antigas, de religião pagã, acreditavam na vida eterna e davam muito mais valor a isso do que damos atualmente no mundo ocidental, eles viviam em função deste futuro que existia exclusivamente na fé. Esta fé não existe mais, pelo menos não no mundo ocidental para a maioria das pessoas. O problema é que ainda não aprendemos a lidar com a perspectiva de fim. E o livro explora exatamente isso. O fim existe, como as pessoas lidam com isso? Se você tivesse a oportunidade de conviver com a vida eterna, pagaria o preço?
Arthur: Eu vejo diferente. Eles valorizavam a morte: a morte era importante pra vida. Era um ciclo. Quando você faz essa inversão, você profana e corrompe o lugar. Não sei…
Pedro: Mas a morte como passagem para algo melhor, não um fim em si, não?
Arthur: Sim, isso sim. Mas era um ciclo. A morte era importante.
Pedro: Agora, levando em consideração a piadinha corrente no facebook: O Cemitério é “Stephen King Raiz”. Talvez o mais raiz de todos os livros dele, é o ápice do macabro. Tudo dá errado para os protagonistas. TUDO mesmo. Só desgraça. Revival vá lá, bem lovecraftiano, legal, mas a trilogia Bill Hodges parece Malhação comparado a’O Cemitério. A triologia Bill Hodges é “King Nutella”.
Sandra: Não consigo comparar as outras dele, pois cada uma possui sua singularidade. E isso é perfeito, pois não ficamos presos a um único estilo de trama, n’O Cemitério temos o sobrenatural, o fim trágico de nossos personagens, e não é assim em todos os livros
Jonatas: Genial esse trecho de Epicuro que o Arthur colocou. [Referindo a outra parte da discussão, de que a reflexão sobre a vida só existe pela consciência da morte]. Isso é uma das lições mais marcantes que eu não esqueço, abordada na série Six Feet Under, que eles falam que só valorizamos a vida justamente porque ela é finita, porque a morte chega para todos. Eu particularmente gosto muito desse tema morte. É um assunto tão tabu e temido que os modos de encarar isso são tantos, mas todos tão interessantes. Essa série é fantástica em explorar o tema, eu passei a ver a própria vida de forma diferente por meio de Six Feet Under. Recomendo muito pra quem curte o assunto.
Arthur: Sempre tive vontade de assistir a série. Podemos falar dos personagens e da trama.
Jonatas: Claro. Como vocês veem a volta à vida de quem é enterrado no cemitério? O que vocês acham dessa coisa da complexidade, os bichinhos voltando com algumas mudanças físicas e de comportamento e os humanos com aquela bizarrice toda? No fim, vale trazer alguma forma de vida de volta? Como o gato, ou animais pequenos?
Arthur: Pelo fim do livro, claramente não vale.
Pedro: A resposta acho que é unânime: não vale a pena. O mais interessante é ver pelo ponto de vista dos personagens, não através do nosso. Essa discussão (a vida a qualquer custo) é bastante recorrente em UTI [Pedro é médico residente]. Vale a pena manter a vovó de 90 anos cheia de tubos, sondas, em coma, na UTI, mesmo que esteja sofrendo? A resposta que passa de imediato na cabeça é: não! Porém, e talvez vocês mesmos tenham tido alguma experiência na vida com familiares em fase terminal, a coisa mais comum do mundo é gente querendo manter seus entes queridos presos ao planeta Terra artificialmente, mesmo que eles não tenham mais qualidade de vida nenhuma. É o apego irracional e egoísta que temos à vida. Um idoso em coma cheio de tubos e sondas na UTI é só uma casca, um reflexo do que um dia foi… mas, mesmo assim, ainda é nosso avô / pai / mãe / filho, ainda o amamos. A dor da separação é grande e é exatamente esse o questionamento — vale a pena? Para mim, não. Mas e se você estivesse no ligar dele? Você perdeu sua esposa e seu filho. O que você faria? Eu tenho certeza que levaria minha esposa e enterraria lá… e olha que eu lido com morte e terminalidade diariamente, mas o cemitério Mic Mac tem poder. O cemitério Mic Mac representa o nosso apego à vida, ele só dá um tom de sobrenatural ao que já acontece.
Arthur: É interessante também como ele [Louis Creed] muda de posição, como ele largas as coisas dele de uma hora pra outra. Aprópria mística do lugar. Uma mística que pode ser literal, como também uma metáfora para o efeito do luto. Para o que é o efeito de perder alguém.
Pedro: Tenho a impressão que ele quis mostrar um pouco dos dois… quer dizer, não é um romance simbólico, é bem literal, é gore, terror visceral… mas é impossível não fazer esta associação e tenho certeza de que ele estava bem ciente disso quando escreveu. Quando o cemitério chama, é como o médico, aquele cara que já viu tanta gente morrer, pensasse: “fodeu, agora é comigo”. E você percebe que não é tão racional assim… ninguém é.
Arthur: Mas também é muito forte a sensação do poder literal. Sobrenatural. Queria ressaltar, também, que, como romance, foi uma experiência muito nova pra mim. Além do Torre Negra, li It, Misery, Iluminado e Sob a Redoma, mas quase eles têm como protagonista um escritor e achei muito gostoso ler uma coisa onde ninguém escrevia! E, pelo que você disse, tá muito bem feita a pesquisa dele. Sob a Redoma também não tinha, mas não era uma construção tão forte quanto essa. Além disso, vi o papel do místico nas crianças está presente em tudo.
Pedro: O papel do fantástico nas crianças está sempre presente.
Arthur: Sim, sem tirar mérito, só comentando pra contextualizar o cenário do King que eu vi.
Pedro: Voltando ao poder sobrenatural real, concordo, também acho que seja literal. Não acho que nenhuma das histórias dele sejam simbólica, com exceção de alguns contos. Ele mesmo em Sobre a Escrita, se não me engano, fala que odeia alegorias, que ele não quer dizer nada com as histórias, quer apenas contar uma boa história.
Arthur: É verdade. Acho que queria elogiar alguns trechos que gosto: de quando ele leva o corpo do Gage e vê aqueles rostos na trilha pro cemitério e de como a presença da fragilidade da nossa vida fica tão presente no começo do livro inteiro — com a história da Zelda e o Gage adoecendo.
Mateus: Enquanto eu lia o livro, a sensação que eu tive foi a mesma que eu tive quando assisti ao Exorcista pela primeira vez. Por mais que eu ficasse apreensivo com o filme, o que mais me agoniava era ver a personagem da Ellen Burstyn completamente impotente e sem qualquer jeito de ajudar a filha que estava em um sofrimento profundo. O que o King explora aqui, a meu ver, é um tema bem recorrente na obra dele: a ausência paterna. Pode-se argumentar que as ações de Louis são todas movidas por um desejo de não deixar que aconteça com os filhos o mesmo que aconteceu com ele. A maneira como o King eleva isso ao extremo é o elemento mais interessante do livro, na minha opinião. Meus problemas se resumem mesmo às tentativas do King de “prever” pro leitor o que vai acontecer. É muito destaque na estrada e conversas incessantes sobre os animais mortos, sem contar os presságios do Louis em relação ao Gage que ocorrem com uma frequência quase frustrante. Ainda assim, achei uma leitura bem cativante e pessoal.
Arthur: Não só a ausência, mas a própria paternidade. Na Torre Negra tem a frase que os pistoleiros dizem toda hora que é para “não esquecer a face do pai”, O Iluminado também tem um pouco disso. Também, não só a relação pai e filho do Louis — Gage, mas da Rachel — Irwin. Se não me engano, no começo do livro quando Louis conhece o vizinho, King descreve a relação deles como alguém “que conheceu um pai”, não é? Outra que relembrei: a história do menino que vai para a guerra é renascido por conta do pai. Também aquele lance do “coração do homem” ser responsável pelo que planta. Eu não tinha prestado atenção nisso.
Mateus: Sim, ele menciona algo como “Louis que perdera o pai aos 3 anos e nunca tivera um avô não esperava encontrar um pai agora, na meia idade, mas foi o que aconteceu”. Para mim, o King calca as histórias dele muito em duas coisas: Conflito de autoridade e metalinguagem.
Arthur: Não vejo conflito de autoridade como uma base dos livros dele…
Mateus: Eu vejo, mas não de maneira direta. É mais o sentimento de se libertar de qualquer amarra.
Arthur: Acho que o Conflito de Autoridade é um eixo do que ele usa de fato como pilar, que é a construção da natureza humana. Sob a Redoma, por exemplo, Conflito de Autoridade aparece, mas é um dos eixos.
Mateus: Sim, mas você tem algo como Carrie, por exemplo, em que o conflito principal do livro é a Carrie tendo a feminilidade reprimida pela mãe, uma figura de autoridade. Sempre tive essa visão, talvez lendo mais ela mude.
Arthur: Estou tentando entender como você define a “figura de autoridade”. Se for numa concepção bem ampla, aí eu realmente vejo na maioria das coisas que li. Mas ainda não sei se é mesmo uma base… Mesmo nO Iluminado, o Jack fica mais a serviço dos espíritos malignos do que no caminho do Danny lutar contra essa figura de autoridade.
Mateus: Sim, O Iluminado puxa bem mais para a questão da paternidade que comentamos.
Arthur: Não sei, por um lado o Jack deixa de ser pai e passa a ser instrumento dos espíritos do Overlook.
Mateus: Sim mas isso não poderia funcionar como uma metáfora para alcoolismo? Como o Danny vê ele?
Arthur: É verdade. Preciso rever os livros nessa perspectiva. É possível mesmo… Mas voltando ao que você disse do cemitério, pra mim fica claro a presença disso. Para você continuar, te interrompi aqui: “Metalinguagem e conflito de autoridade”.
Mateus: Metalinguagem talvez não seja exatamente o termo correto, tá mais para autobiografia. Eu li online que o King de fato visitou um cemitério de animais e que ele decidiu escrever o livro quando o filho dele quase foi atropelado. São mais as dúvidas dele do que propriamente metalinguagem, mas de qualquer forma acho muito pessoal, como também é O Iluminado e Misery.
Arthur: Você me lembrou só de como ele brinca bem com a coisa de estar em dois lugares na mesma cena do texto: seja em dois lugares geograficamente ou temporalmente. Falando “e daqui nove meses Nora estaria morta”. Gosto desses recursos que ele usa ao longo do texto, mas não sabia dessa história do filho, sabia só que ele não queria publicar porque achou muito sinistro.