Face humana da guerra
A década de 1960 foi efervescente nos EUA. A sociedade via movimentos de direitos civis para negros e mulheres, conhecia a Guerra do Vietnã, vivia o Assassinato de Kennedy, escutava Rock e se habituava aos Hippies, ao consumo de LSD, ao festival de Woodstock, sem contar os choques que as revoluções sexuais e diversas outras inovações, que não foram destacadas nesse levantamento rápido e sucinto, causavam. O jornalismo, nesse contexto, também se revolucionou e deu asas ao que conhecemos como Novo Jornalismo.
O Novo Jornalismo surgiu tendo referência na literatura de Realismo Social — Dickens, Balzac e Flaubert são um exemplo disso. Em um estudo, Franco Moretti explica que essas produções davam extrema importância aos ‘enchimentos’ das tramas em detrimento das ‘bifurcações’ (os primeiros são os fatos cotidianos que não movimentam o enredo e raramente são lembrados depois de lidos; os segundos, os desdobramentos do enredo). Segundo Tom Wolfe, um dos jornalistas expoentes do movimento, esse tipo de literatura era reverenciado por uma parcela dos jornalistas, que trabalhavam nas redações com intuito de adquirir repertório o suficiente, escrever o Grande Romance e se aposentar. Foi ao prestar homenagem à essa literatura que os jornalistas viraram o jogo: se apropriaram das técnicas, inverteram as relações produtivas e superaram a ficção, tanto em público quanto em qualidade — já que, segundo Wolfe, a literatura já não conseguia captar a efervescência cultural.
Uma centena de milhares de pessoas foram mortas pela bomba atômica, e essas seis são algumas das que sobreviveram. Ainda se perguntam por que estão vivas, quando tantos morreram… — Hersey, p. 8
John Hersey (1914–1993), escritor de Hiroshima, é considerado o principal precursor desse jornalismo literário moderno, o Novo Jornalismo. Correspondente das revistas Life, Time e The New Yorker e ganhador do Pulitzer, em 1945, pelo romance de Guerra A Bell for Adano (sem tradução), Hersey escreveu a primeira parte da matéria em seis semanas no ano de 1946. Publicada na The New Yorker, a revista teve uma edição histórica: ao invés de publicar a matéria em partes, reservou a edição inteira para a reportagem com um aviso:
Esta semana, The New Yorker devota todo o espaço editorial a um artigo sobre a quase completa obliteração de uma cidade por uma bomba atômica e sobre o que aconteceu à população daquela cidade. Isso é feito com base na convicção de que poucos de nós compreenderam todo o inacreditável poder destrutivo dessa arma, e que todos possam ter tempo para considerar a terrível implicação do seu uso.
O resultado? A edição de 300 mil exemplares esgotou e teve de ser reimpressa — os direitos da reimpressão foram doados para a Cruz Vermelha. John Hersey, cerca de 40 anos depois da publicação da reportagem, retorna ao Japão e conclui a história dos seis hibakushas (termo japonês referente aos sobreviventes e que significa “pessoas afetadas pela explosão) retratados, lançando a reportagem completa em livro.
No Brasil, a publicação foi lançada sob o selo “Jornalismo Literário” da Companhia das Letras, em 2002. O livro retratou a história de seis personagens — uma viúva, uma secretária, um padre, um reverendo e dois médicos — e foi divido em 5 capítulos: O primeiro, “Um clarão silencioso”, faz uma descrição detalhada dos personagens, das suas rotinas e de Hiroshima até o momento de explosão da bomba; o segundo, “O fogo”, apresenta os efeitos imediatos da explosão da bomba — como uma chuva negra repleta de radiação, ou os incêndios que destruíram o pouco que sobrou da cidade; o terceiro, “Investigam-se os detalhes”, mostra a normalização da tragédia e a tentativa dos japoneses de entender qual tipo de tecnologia foi utilizada; o quarto, “Flores sobre ruínas”, trata da investigação dos efeitos da radio-intoxicação e da volta à rotina; o último, “Depois da catástrofe” encerra a narrativa com o desfecho da vida dos hibakusha, 40 anos depois da explosão.
No primeiro momento da era atômica livros imprensaram um ser humano numa fundição de estanho — Hersey, p.22
A escrita de Hersey tem vida, pulsa. No entanto, não é nada heroica ou romantizada: ela dói, machuca. Nenhum detalhe é poupado: a pele dos sobreviventes derrete, os gritos de “Socorro!” são dos que não puderam ser salvos, as crianças mortas repousam nos braços das mães… Mas não é somente o peso da tragédia que sustenta a história. John Hersey, aparentemente, captura a amplitude da bomba e, também, a essência da comunidade e dos personagens retratados.
A espiritualidade afinada e o culto aos ancestrais, presente nas ações cotidianas e dissociadas dos credos, é retratada com afinada fidelidade. Richard Lloyd Parry, em matéria sobre os mortos do tsunami de 2011, mostra como o Japão se declara um país pouco religioso, mas tem uma espiritualidade oculta presente em todos os lares, em todas as famílias. Em ‘Hiroshima’, vemos a preocupação com a identificação dos corpos e a cremação. Além disso, é possível perceber a ingenuidade espiritual do país, conforme descrita por Campbell no terceiro volume de sua coleção “As Máscaras de Deus”: O imperador, por exemplo, era cultuado por possuir ligação direta com as divindades nacionais, os kamis. É no comunicado sobre o fim da Segunda Guerra Mundial que o Imperador renuncia sua divindade e, sob a visão do sacrifício da rendição para o bem da nação, causa comoções de extrema gratidão nos cidadãos por ouvirem a voz do Imperador.
O relato do desastre também põe em perspectiva a visão ocidental e as virtudes absorvidas pelo Bushido (Caminho do Guerreiro) no Japão, também descritas no livro de Campbell. Os atributos fundamentais do caminho são a lealdade aliada à coragem, ser verdadeiro, ter autocontrole com benevolência e ter disposição para desempenhar o papel dado a cada um na representação da vida — e, quando falhar, sair de cena pelo suicídio.
A vivacidade da reportagem nos remete, quase imediatamente, às imagens dos conflitos atuais, como a guerra na Síria, que já fez 470 mil mortos. O livro apresenta uma reflexão sobre o sofrimento humano que permeia qualquer guerra e é, muitas vezes, deixado de lado. Por fim, conforme posfácio de Matinas Suzuki Jr., o livro também serve, aos jornalistas, como exemplo de bom jornalismo e de inspiração para os momentos conturbados que a imprensa vive hoje.
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