Correnteza # Março/2024
algumas das coisas que correram na vida durante o mês de março — livros, jogos, filmes, podcasts, quadrinhos e notas aleatórias
Durante a revisão da tese, tive diversos planos para a Ponto Nemo em 2024. Mas, na época da defesa, fiquei em crise… um pouco do desânimo que surge das expectativas que temos, de onde estaremos em determinados momentos da vida. Preferi deixar para fechar as edições mais tarde, não escreve-las como um desabafo pessimista.
Acho que as coisas estão voltando aos trilhos. Então, enquanto reorganizo os textos, envio a edição da Correnteza de março, geralmente exclusiva para os apoiadores, para todos os inscritos. Como o subtítulo pressupõe, as Correntezas são resumos mensais de coisas que passaram por aqui.
Então, se você ainda não for inscrito, não deixe de colocar seu e-mail no botão abaixo para não perder nenhuma edição. Caso seja, o botão também permite um upgrade na assinatura para apoiar e garantir a continuidade da Ponto Nemo — se preferir, também temos a página no Financiamento Coletivo no Catarse. As Correntezas são edições exclusivas para os apoiadores, então, se gostar do formato, aproveite! 👇
1.
Durante algumas semanas, entrei num vórtex. Fui sugado pelo mundo de Hollow Knight. No jogo, você controla um Cavaleiro desmemoriado que chega em Hallownest, um reino outrora próspero, mas agora decadente e corrompido pela matéria etérea da Radiância. Todos aqueles com sonhos e livre arbítrio foram contaminados pela Infecção. Na tentativa de preservar os avanços da maldição, o Rei Pálido criou um ser repleto de Vazio, uma Casca… um Cavaleiro Oco, sem vontade, mente ou voz, que poderia conter a Radiância em si e salvar o reinos.
Mas os laços afetivos estabelecidos entre o Rei Pálido e o Cavaleiro Oco tornaram a Casca impura e Hallownest cai em desgraça. Você — que descobre também ser um outro tipo de Casca oca — é a esperança da cidade.
Bom, para além da história… é importante dizer que todos vocês insetos ou seres pequenos, e a arte do jogo é fabulosa em criar esse mundo. O Rei Pálido faz parte de uma casta de seres que surgem de minhocas gigantes que caminham pelo mundo até morrerem. Da sua carcaça, surge um ovo. O Rei, em si, tem uma coroa porque sua cabeça reflete a anatomia dos dentes da minhoca gigante. A Radiância é proveniente de uma tribo de mariposas (mas eu sempre soube que elas eram vilãs). Os bairros de Hallownest tem tradições específicas: alguns, são das aranhas; outros, fazem parte do Reino dos Louva-deuses; as Abelhas, protegeram-se (ou tentaram) na colmeia selando as paredes com cera; o serviço de transporte é feito por uma linhagem de Besouros. Inclusive, o mapa é construído como um formigueiro (em alta definição, clique aqui):
Não é a primeira vez que tentei (e preciso agradecer à copilota de mapa,
). Me perdi um bocado. Passei raiva. Fiquei sem saber onde ir. Desisti, mas voltei neste mês e terminei tudo que queria — com exceção do um desafio em um espiritual que procura e devora deuses, mas acho que não quero fazer. De qualquer forma, consegui me conectar tanto com o jogo porque assisti a alguns vídeos que contam a história desse universo e, mesmo que você não jogue, fica a recomendação:O canal mossbag no YouTube tem muitos vídeos para quem quiser conhecer, mas recomendo o A história (quase) completa de Hollow Knight, que organiza os acontecimentos gerais e tem uma narrativa interessante mesmo para quem ainda não conhece o jogo. É em inglês, mas há a opção de legendas em português.
Outro vídeo interessante, mas esse um pouco mais técnico, é uma análise sobre O design do mundo de Hollow Knight | Boss Keys, também em inglês & legendado, mas mostra como a criação do jogo cria um mundo vivo, imersivo, coloca o jogo em perspectiva com outros lançamentos do mesmo gênero e… quem sabe, não te incentiva a começar uma partida?
2.
No campo da leitura, li A Pediatra, de Andrea del Fuego, para o Clube de Leitura 2024 do 30:MIN — uma leitura sobre uma médica (que atende & odeia crianças) e se vê em dois conflitos: uma complicação com um pediatra good vibes que trabalha com uma doula e o enredamento dela com Celso, um homem casado. A escrita de Andrea é bem interessante, a voz narrativa muito boa, mas a trama poderia ter uns ajustes (bom, se quiser ouvir o que falamos, tem episódio).
Comecei, também, a (re)leitura do próximo título do clube: Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino. É um dos meus livros preferidos! Gosto das discussões sobre a arte da escrita e da leitura, o perfil dos leitores, as diferentes formas de escrever uma narrativa e o tom meio absurdo que o livro vai adotando. Não vou dar uma sinopse porque, para mim, esse livro foi feito para se conhecer lendo o primeiro parágrafo, que diz o seguinte:
Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros: “Não, eu não quero ver televisão!”. Se não ouvirem, levante a voz: “Estou lendo! Não quero ser perturbado!”. Com todo aquele barulho, talvez não tenham ouvido; fale mais alto, grite: “Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!”. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.
Também estou no meio de duas outras leituras: sigo no caminho da Tetralogia Napolitana, estou concluindo o terceiro volume, História de quem foge e de quem fica. Cada vez mais surpreso com a escrita da Elena Ferrante. Recentemente, dois caras que falam sobre livro na internet estavam comentando como “acham chato” os livros da série porque “não acontece nada”. Eu achei triste. A forma com que ela constrói a narrativa, adapta o estilo conforme os momentos da vida das duas meninas, cria os paralelos em um processo quase como o de duplos na literatura e traz a percepção dialógica da linguagem (e da vida) é muito boa. Não conseguir aproveitar essa escrita porque não tem pulos, ações, tiros, perseguições, dramas, lágrimas e tremeliques a cada cinco parágrafos é uma pena.
Antes de dormir, sigo na minha saga de “livros com navinha” e recomecei a leitura do primeiro volume da série The Expanse (livro + audiobook). Pretendo seguir a linha de publicação completa, não só com os romances, mas com os contos soltos também (ou seja, depois de Leviathan Wakes temos The Butcher of Anderson Station, com a história de Fred Johnson).
Um último adendo sobre as leituras: li o primeiro volume de Lore Olympus, uma releitura do mito da Perséfone e de Hades escrita pela Rachel Smythe e é mesmo maravilhosa e interessante como dizem. Também retomei o hábito de ler alguns contos publicados por editoras e revistas independentes — atualmente, estou tirando o atraso de alguns presos nos meus favoritos publicados pela Tor.
3.
Revi Duna I e fomos ao cinema para assistir a segunda parte. Gosto dos filmes e do que tem sido feito, então meus comentários sobre o longa seriam só mais uma voz na câmara de eco. Mas, acho que há um aspecto da discussão sobre a narrativa que pode ser levado em consideração.
Há alguns anos, antes mesmo do primeiro lançamento nos cinemas, uma das colunas do Reactor (ex-Tor) publicou um texto que comentava por que é importante considerar se 'Duna' é a história de um 'Salvador Branco' (em inglês). Para quem não conhece, o mito do ‘salvador branco’ (ou ‘white savior’, já que algumas pessoas não traduzem os termos) pode ser resumido em termos simples: alguém chega em uma comunidade repleta de problemas e se torna o herói & salvador daquela cultura, ainda que estrangeiro. O que a nomenclatura pressupõe é que aqui não há uma troca igualitária, um crescimento mútuo que surge atrito em diferentes perspectivas sobre a vida, mas há uma estrutura hierárquica, um jogo de poder: o herói que chega é, geralmente, um homem branco que traz a iluminação para pessoas não-brancas a partir do seu conhecimento e tecnologia, traz a “civilização” aos “bárbaros”.
Isso pode tomar diferentes formas, fantasiosas ou não… como Avatar, do James Cameron, em que o soldado estadunidense se torna um nativo para salvar o mundo de Pandora (dos soldados estadunidenses). Ao escrever a série de livros, Herbert conduz Paul Atreides dentro do mito: como escolhido, ele guiará os Fremen. Mas “o profeta” é, na verdade, fruto de um experimento de poder e manipulação das Bene Gesserit e, a longo prazo, dentro da cronologia dos livros, a família Atreides destrói um modo de vida antigo e corrompe a cultura do Fremen.
(Há ressalvas, claro. A intenção não sobrepõe a execução. A coluna citada acima mostra, por exemplo, como o vilão é o único personagem obeso e visivelmente queer, além do fato do experimento perfeito da sociedade secreta das mulheres sábias ser sempre um homem e, nesse caso, branco — um experimento eugênico.)
No filme, temos traços sutis dentro desse movimento de distorção do ‘salvador branco’. A escolha de Villeneuve no novo destino da Chani (Zendaya), por exemplo, não revela a dor de “um coração partido”, mas a percepção da destruição do povo que se curva à Paul Atreides (Timothée Chalamet). Além disso, há relatos de Frank Herbert estudando e se conectando com a natureza e seus elementos para trazer a tragédia climática para Arrakis, mostrado no texto Como 'Duna' se tornou um farol para o movimento ambientalista.
Por fim, a
, do , publicou uma coluna em vídeo no canal do Jornal Nota que acho interessante compartilhar, falando sobre intertextualidades e referências na obra: Duna é uma distopia islâmica?4.
Felizmente, Mara entrou num momento em que está encantada por Kyle MacLachlan e estamos aproveitando ao máximo essa empolgação (e aproveitando para descansar de House, que já me cansou e ainda não está nem na metade). Finalmente, conseguimos terminar a primeira temporada de Twin Peaks, curtindo e até com o direito de comprar o livro A história secreta de Twin Peaks, escrito pelo Mark Frost.
Além disso, voltei a assistir o que me faltava de Apenas um show e estou reescutando os episódios da primeira temporada do podcast Vinte mil léguas, da Leda Cartum e Sofia Nestrovski — primeiro, porque tem uma exposição delas no Sesc Santo André sobre Darwin que eu quero ver; segundo, porque saiu a terceira temporada, sobre Galileu Galilei e aproveitei para revisitar. Quem não escutou ainda, recomendo.
Também fui convidado para a cabine da adaptação do A paixão segundo G.H. e logo deve rolar episódio no podcast 30:MIN sobre o livro e o filme! Fiquem de olho.
5.
Nesses últimos três meses, recebi alguns livros muito bons que estão na minha lista de leitura. São obras que quero trazer para cá, mas como estou terminando a Tetralogia Napolitana e esse e o próximo mês é mais denso de leitura para o podcast, cito o que chegou por aqui e que devem figurar logo:
A Darkside me enviou o Casa de Folhas, de Mark Z. Danielewski, e ficou bastante bacana. Comecei a leitura, mas tive que pausar. Estou ansioso para ver a tradução, mas é um livro que gosto bastante. Se você tem curiosidade de ler, o tradutor
publicou uma edição em que comenta um pouco da obra.Da Todavia, quero ler Contra Fogo, do Pablo L. C. Casella, e O mago, o santo, a esfinge, do Fernando Pinheiro. O primeiro título narra brigadistas voluntários da Chapada Diamantina e traz uma experimentação linguística muito bacana que me agradou. O segundo traz ensaios sobre Paulo Coelho, Manuel Bandeira e Clarice Lispector no intuito de esmiuçar o que constrói a imagem deles enquanto escritores no espaço público.
Dos lançamentos da Boitempo, pedi algumas coisas que me interessam um bocado. Na perspectiva de questões ambientais, recebi Enfrentando o antropoceno, de Ian Angus, e O ecossocialismo de Karl Marx, de Kohei Saito. Também temos a leitura do último livro de Judith Butler, Quem tem medo de gênero?.
A Fósforo enviou duas leituras que me parecem incríveis, o texto de Efrén Giraldo Sumário de plantas oficiosas: um ensaio sobre a memória da flora que me despertou muita curiosidade. Além disso, o índice, uma história do, de Dennis Duncan.
A morte é um negócio solitário e Cemitério de lunáticos, da trilogia de Hollywood de Ray Bradbury, parece ser um envio bastante bacana que a Biblioteca azul fez para cá.
Por fim, os próximos livros da Companhia das Letras que eu pretendo ler são: Coelho Maldito, coletânea de contos de Bora Chung, Cupim, uma narrativa de terror de Layla Martínez, Pigmento, quadrinho de Aline Zouvi, e conhecer William Faulkner pelo Palmeiras selvagens.
6.
Para concluir a edição, também ando pensando muito na Ponto Nemo e minha produção autoral.
Primeiro, por conta das temporadas. Com a produção pausada, sinto falta. Gosto de me debruçar sobre um tema, mas é uma escrita que exige muito e não temos muitos apoiadores. Então, tenho repensado o formato e a disponibilidade (ou o congelamento definitivo, também. São coisas que fazem parte da vida.).
Além disso, quero retomar alguns projetos de mais fôlego. Uma ideia de HQ semiestruturada que gostaria que virasse roteiro. Voltar a escrever ficção. Alguns projetos que estão informes, mas precisam ter momentos dedicados para que possam tomar algum contorno. Quero transformar a dissertação em uma espécie de guia, um título provisório de: Para falar de livros na internet: do texto ao TikTok. Já tenho a estrutura. Preciso adaptar a linguagem, trazer algumas questões de escrita e formular.
Tenho pensado em uma nova editoria nos textos mensais sobre Diário de Escrita, algo que me mantenha nos trilhos, porque é um momento de certo desânimo profissional. Veremos.
7.
Post-Scriptum. Alguns links interessantes que apareceram por aqui durante as duas últimas semanas:
Como a ditadura fez violência com cidades de concreto - 31/03/2024 - Ilustrada - Folha
As novas gerações e a satisfação e felicidade no trabalho — Gama Revista
Os estágios da decomposição da baleia - YouTube (em inglês)
Sítio na Paraíba reúne pegadas de dinossauro e gravuras - 10/04/2024 - Ciência - Folha
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Outras produções estão disponíveis no meu site pessoal e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
Se quiser conversar, pode responder esse e-mail ou me encontrar no Instagram.
No último mês, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 471 – Piranesi, de Susanna Clarke”;
Participei do episódio: “30:MIN 472 – Nascida para o Trono, de Vilto Reis”;
Participei do episódio: “30:MIN 473 – Pobrefobia e Padre Júlio Lancellotti”;
Participei do episódio: “30:MIN 474 – 60 anos do Golpe Militar”.
É sempre um prazer te ler, amigo <3
Já vou buscar para reler. Todos, na pilha interminável de torres em equilibro na mesa do meu cantinho