Correnteza # Julho/2024
demissão, rosa montero, james baldwin, leituras & tubarões — o que rolou em julho por aqui
Hoje, teremos uma edição mais curta. Como explico abaixo, estive trabalhando em um texto mais denso e, ao mesmo tempo, perdi meu emprego. Acabei atrasando uma edição, focando em outros serviços e fiquei com menos discussões para trazer para cá.
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1.
Um dos livros que li mês passado foi O perigo de estar lúcida, de Rosa Montero. Fui pautado para escrever uma resenha sobre ele, mas, enquanto estruturava a resenha, entrei em uma espécie de crise.
Montero traça paralelos entre a loucura e o ato criativo, principalmente o da escrita. Levanta dados sobre doenças mentais e sua incidência em artistas, suas relações com uso abusivo de substâncias e com o suicídio e, também, as pequenas “anormalidades” presentes no cotidiano daqueles que sentem o ímpeto de criar e os traumas que geralmente surgem em uma determinada época da vida.
No entanto, conforme a leitura avançava, eu ficava: mas não é todo mundo assim? Não estamos todos passando por traumas durante a infância? Não temos todos esse ímpeto de criar? Talvez eu esteja errado, mas é que sempre imaginei a ânsia criativa como um instinto humano — ainda que manifestada de maneiras mais plurais das que estamos acostumados a considerar.
Por exemplo, as pessoas que possuem um repertório tão grande de sabores e querem criar novos pratos, misturar gostos ou procuram ingredientes antes não conhecidos — não é à toa que Inês Breccio, minha mãe, aproximou o ato de preparar uma geleia com o de preparar uma história para ser contada em um dos capítulos do livro Antigamente era assim.
Mas podemos ampliar a noção. Revitalizar um espaço natural, ser parte ativa e consciente de um sistema composto por várias espécies, conhecer plantas e suas propriedades, animais e seus hábitos & enxergar um espaço não só pelo que é, mas também pelo que pode ser não é, também, uma criação? Observar as estrelas, traçar suas trajetórias e estudar suas propriedades não era um dos ofícios mais considerados séculos atrás?
A linguagem matemática, por exemplo, exige uma capacidade de compreensão diretamente ligada à necessidade do pensamento abstrato (porque o 2 é o 2, não duas balas ou dois carneiros). Então, quão distante estaria a beleza de uma equação da de um poema? Não parece uma diferença apenas de alfabetização e linguagem?
Enfim. Enquanto pensava nisso, fui demitido. O setor da empresa em que eu trabalhava foi extinto e… as diversas crises que sempre me acometeram na minha vida profissional ganharam um pouco mais de fôlego. Não era o emprego dos sonhos, mas são momentos assim que alimentam a sensação acachapante de não encaixar.
Então, será que realmente não é normal?
Não sei.
2.
Vou comer dois dias de agosto para falar brevemente sobre James Baldwin. Neste sexta-feira, dia 02 de agosto, comemoramos o centenário de nascimento deste que foi um dos maiores escritores nascidos nos Estados Unidos.
Ano passado, fiz a leitura de O quarto de Giovanni. A obra retrata o relacionamento perturbado de David e Giovanni, dois jovens que se conhecem em Paris e apaixonam-se. David é um jovem estadunidense que viaja a Paris enquanto espera sua noiva aceitar seu pedido de casamento e Giovanni é um italiano proletário, que foge de seu país com uma mão na frente e outra atrás.
Baldwin faz um retrato magnífico das relações de poder na sociedade e nas relações afetivas. Esmiúça a interseccionalidade antes mesmo do termo ser cunhado. Se você ainda não conhece James Baldwin, recomendo. Separei alguns links para vocês:
Esse podcast português, Fumaça, tem um material bastante completo e interessante para quem quer visualizar a completude e abrangência da obra do escritor.
Walter Porto escreveu, para a Folha de S.Paulo, um panorama sobre James Baldwin com os livros que temos no mercado editorial e aqueles que virão no texto James Baldwin faz 100 anos como ícone do antirracismo de incansável independência. Também na Folha de S.Paulo, Thiago Amparo afirma que James Baldwin lembra que história dos Estados Unidos é a dos negros em uma outra análise interessante.
Para quem lê em inglês, Alexander Durie escreveu no Literary Hub sobre as raízes da solidariedade negra-palestina em James Baldwin — e você pode encontrar outros textos na página para o centenário, com diversos textos indicados também publicados no Literary Hub.
(De qualquer forma, leiam O quarto de Giovanni.)
3.
Em julho, li Luísa Geisler pela primeira vez. Li Quiça e Corpos secos (escrito em coautoria com Marcelo Ferroni, Samir Machado de Machado e Natalia Borges Polesso). Gostei muito de Quiça. O livro tem uma premissa simples: conta a história de dois primos que se conhecem em condições complexas — o mais velho, depois de uma tentativa de suicida, vai morar com os tios, que têm uma filha pequena & completamente largada, já que trabalham 12 horas por dia em uma agência. Mas, pra contar essa história, Geisler faz uma construção muito interessante que envolve alternâncias narrativas e um tempo-espaço bastante afetado pela lógica da memória.
Li o O problema dos três corpos, que é o primeiro volume da série de livros Lembranças do passado da Terra, de Cixin Liu. Não consegui ler a tempo de acompanhar ou ver as séries, mas gostei do que vi até agora. É interessante como ele sabe que vai escrever para pessoas que não conhecem a história da China e consegue nos colocar dentro dos contextos. Há também uma beleza na forma com que eles trabalham a física que se relaciona diretamente com o que escrevi no começo do texto (mas a forma com que as vidas não-humanas são exageradamente humanas me incomodou um tiquinho).
Também conheci a escrita da Socorro Acioli com A cabeça do santo. Socorro foi uma das últimas alunas de Gabriel Garcia Marquéz e eu estava ansioso para ler alguma coisa dela. A cabeça do santo é divertidíssimo. Traz a história de um menino que odeia santos, mas encontra abrigo na cabeça de uma estátua de São Francisco em uma cidade quase morta. Ali, ele começa a ouvir todas as preces que as mulheres fazem para o santo casamenteiro — e é claro que, junto com um amigo, encontra a melhor forma de tirar proveito da situação. O fato de que a estátua é a ruína da cidade porque (1) montaram a cabeça no chão e o peso tornou impossível o translado para a estátua de pé, (2) que o responsável pelo problema era um sujeito conhecido como Meticuloso e que (3) a obra custou milhões para o cofre público é um charme a parte.
Li Palestina, de Joe Sacco. Entendi porque o livro é um marco na história do jornalismo em quadrinhos. Se você se interessa pela questão palestina, recomendo a leitura do livro. É um bocado caro, mas vale a leitura.
Por fim, também li Gay de Família, de Felipe Fagundes, e gravamos uma live sobre isso no canal do 30:MIN. O livro é divertidíssimo e a gravação está disponível no YouTube. Mas, se preferir, logo estará disponível a versão cortada no Spotify.
4.
Duas breves indicações em links.
Em um dos episódios do podcast Café da Manhã, o antropólogo Michel Alcoforado discutiu questões sobre trends, modinhas e o uso das redes sociais. É muito instrutivo como ele fala sobre a constituição da identidade, da velocidade e maleabilidade dessas construções no ritmo da internet e também de como a possibilidade de estar fora das redes sociais é um benefício quase que exclusivo das classes altas. E a gente achando que era só deletar o Instagram…
Na editoria ecológica, uma coisa que me deixou espantado nos últimos dias foi a pesquisa que apontou cocaína nos tubarões do Rio de Janeiro. Em uma matéria para a revista piauí, Bernardo Esteves e Allan de Abreu comentam como esse fato é só “a ponta do iceberg”. Como predadores no topo da cadeia, os cações costumam acumular todas as porcarias que outros peixes consomem ao longo do caminho e são representativos do nosso descaso ambiental e das políticas de drogas. Por isso, inclusive, eles sugerem: evitem comer carne de cação.
5.
Este mês, recebi envios em duas levas da editora Todavia. No evento mensal para apoiadores, recebi O amor e sua fome, de Lorena Portela; também o romance A boa sorte, de Rosa Montero, e o livro Quando deixamos de entender o mundo, de Benjamin Labatut — estes dois para outros textos que estou escrevendo e preparando. No mesmo evento, peguei o último lançamento da Baião que deve virar resenha no Instagram logo mais: 200 limeriques de Edward Lear para ler e para ver. Depois, pautado pelo jornal Rascunho, recebi O perigo de estar lúcida, de Rosa Montero, e Escrever é muito perigoso, de Olga Tokarczuk.
No mesmo período, recebi a versão física de Olhos de pixel, de Lucas Moto, publicado agora pela editora Rocco. Ganhador do Jabuti na categoria de Romance de Entretenimento, o livro ficou belíssimo.
A Cia. das Letras me mandou o livro de Cat Bohannon, Eva: como o corpo feminino conduziu 200 milhões de anos de evolução humana. Estou ansioso para conhecer um pouco do tom do livro e ver o que ele traz de interessante.
Obrigado por ler até aqui!
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Estou com a agenda aberta para receber textos literários/ensaísticos para leitura crítica, preparação e/ou edição e textos acadêmicos para revisão.
Outras produções estão disponíveis no meu site pessoal e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
Se quiser conversar, pode responder esse e-mail ou me encontrar no Instagram.
No último mês, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 488 – A coleção privada de Acácio Nobre, de Patrícia Portela”;
Participei do episódio: “30:MIN 489 – Livros que fazem chorar”;
Participei do episódio: “30:MIN 490 – ‘A Estrada’ merece o prêmio?”.
Baldwin 🖤
Que a questão do emprego se resolva rápido, Arthur.
um abraço