Correnteza # Agosto/2024
algumas das coisas que correram na minha vida durante o mês de agosto — livros, jogos, filmes, podcasts, quadrinhos e notas aleatórias
Quando esse e-mail chegar para vocês, já terei começado meu novo trabalho como Editor Assistente em uma editora de quadrinhos. Acho que vai ser uma nova experiência e que será bastante interessante. Veremos como as coisas se desenrolam.
Seguindo com a publicação, neste mês tivemos:
um RPG de mistério, suspense e terror baseado na mitologia escandinava;
leituras de livros sobre coisas verdes, pantanosas e simbióticas;
além de um livro sobre a história da vida na Terra;
algumas considerações sobre alienígenas, horror corporal e melecas;
um clipe interessante e de origem desconhecida;
livros recebidos;
outras leituras, filmes & jogatinas.
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1.
Em agosto, narrei quatro sessões de Vaesen, um sistema de RPG baseado na mitologia escandinava que estava muito empolgado para testar.
Durante o século XIX, a Europa enfrenta um grande período de modernização. As religiões pagãs passam a ser sufocadas pela última investida da igreja católica, a produção rural é menosprezada para o benefício do ritmo industrial e os conhecimentos folclóricos são sufocados pela aplicação da informação técnica e racional do pensamento civilizatório.
Dentro deste redemoinho de transformações, as criaturas mágicas dos países escandinavos, os vaesen, são pegos de surpresa. Abandonando a postura de equilíbrio harmônico com as populações tradicionais, as “fadas” se infectam com a crença de sua impureza e se tornam mais agressivas e descontroladas conforme absorvem as características de hostilidade que o pensamento moderno despeja sobre elas.
Os jogadores assumem os papéis de Filhos da Quinta, pessoas que passaram por situações traumatizantes e agora conseguem ver os vaesen — invisíveis para os outros seres humanos. Eles são recrutados para participar da Sociedade, cuja base fica em um Castelo abandonado na cidade de Uppsala, na Suécia.
As aventuras são organizadas em mistérios que correm por diversos países e o jogadores precisam encontrar pistas, estudar os vaesen, descobrir as intrigas e podres e banir as criaturas da vida na Terra.
Narrei algumas aventuras prontas e já lançadas e gostei bastante da experiência. Aproveitei o momento para ler três livros sobre o assunto:
Mitologia nórdica: As origens perdidas de Game of Thrones, O Senhor dos anéis e outros universos fantásticos, de Reinaldo José Lopes.
Publicado em 2017 por um segmento da revista Superinteressante, o livro é um compilado bastante raso e introdutório sobre narrativas mitológicas célticas e nórdicas, mas bem-humorado. Serviu para ter um panorama geral.Os mitos nórdicos: Um guia para os deuses e heróis, de Carolyne Larrigton.
Carolyne Larrington é uma das pesquisadoras que mais vejo em textos sobre mitologia nórdica. A tradução mais utilizada da Edda Poética (em inglês) é desta pesquisadora. O livro faz parte de uma coleção sobre mitologias da editora Vozes e também é um panorama introdutório, mas já contextualiza algumas questões e tem um arcabouço de indicações bibliográficas mais robusto para quem quiser prosseguir com os estudos.Contos de Fadas Nórdicos, de vários autores.
Tirei o pó da coletânea de contos de fadas que a editora Wish publicou e comecei a leitura, que ainda não terminei. Com um tipo diferente de narrativa, dá para conhecer um pouco mais dos elementos simbólicos da região, assim como ver um pouco do processo de modernização das narrativas folclóricas, já que são versões cristalizadas e ajeitadas por pesquisadores do século XIX. Uma leitura bastante interessante e, principalmente, que preenche alguns buracos do mercado editorial nacional para este tipo de leitura.
2.
Com a proximidade do lançamento de Absolution, quarto volume da série Comando Sul, escrita por Jeff VanderMeer, resolvi reler Aniquilação — desta vem, em inglês. Como não sei se haverá uma tradução da obra, resolvi reler os livros na língua original para me acostumar com a linguagem e começar minha leitura assim que possível.
Para quem não conhece Aniquilação, é um romance curto em que acompanhamos a história de uma bióloga em uma incursão militar para um local chamado Área X, um local que se torna cada vez mais selvagem e passa a “colonizar a civilização” — um conceito que bebe bastante na noção de rewilding, de tornar espaços selvagens novamente e é um esforço que o próprio VanderMeer faz no quintal da casa dele.
No entanto, essa dualidade entre selvagem e colonizado, aos poucos, se mostra muito frágil e um processo de infecção da bióloga mostra que nós todos somos seres complexos, híbridos e simbióticos.
Quando comecei minha releitura, estava um pouco assustado. O livro é um de meus preferidos e passei bastante tempo pensando que era só uma impressão e que talvez ele não fosse tão bom assim. Mas conforme lia, mais me empolgava e lembrava do porque de ter gostado tanto. As sensações que ele constrói e o uso do estranho no livro é me agradam demais.
VanderMeer manda muito bem na descrição dos cenários, da narradora e na escolha de palavras para instaurar uma paisagem natural por toda a obra. Se você ainda não leu, recomendo fortemente — tanto em inglês quanto em português. Além disso, se não for fã de sagas e coleções, não é um problema: os livros apresentam uma conclusão satisfatória das tramas principais e a continuação fica só para quem quiser conhecer um pouco mais da Área X.
Para quem ler em inglês, os portais publicaram as introduções de dois dos três volumes da nova edição da coleção (especial de dez anos), uma escrita pela N.K. Jemisin e outra por Helen Macdonald. Tem também um diário de escrita da trilogia, feita e publicada em tempo recorde.
2.1.
Na mesma editoria e seres híbridos e simbióticos (e a construção de uma consciência para a natureza), comecei a ler alguns trabalhos do Alan Moore.
Li Do Inferno, um quadrinho sobre o Jack, o Estripador, que não tem nada a ver com o assunto, mas curti tanto a apresentação da magia como linguagem que resolvi emendar com a leitura dos seis volumes de A saga do Monstro do Pântano — que ainda estou no começo do quinto volume.
Achei bastante original a proposta que Moore faz do herói, de como ele organiza narrativas e arcos para mostrar a relação da parte humana com a inteligência “do verde”, suas proposições sobre a essência da humanidade e a força do planeta. Algumas paisagens e as cores são belíssimas e as mesclas com outros personagens, como o Constantine, de Hellblazer, ou Caim e Abel, de Sandman, são muito legais para quem curte o universo dos heróis.
Muitas discussões sobre o hibridismo e as relações entre diferentes espécies são apresentadas ao longo das narrativas e também sobre a ineficácia de definir o que é bom ou mau dentro das relações da natureza.
3.
Dentro das outras leituras, adiantei algumas coisas para a produção do podcast.
Finalmente, conheci Jane Austen. Autora preferida da Ceci, que divide comigo o podcast 30:MIN, li Persuasão para um dos episódios que gravamos. O livro narra a história de amor entre Anne Elliot e Frederick Wentworth e todos os quiprocós que envolvem um casamento na sociedade inglesa.
Anne e Frederick se amam, mas, assim que se conhecem, têm suas decisões pautadas pelas relações de poder e influência dos amigos próximos. Anne faz parte de uma família rica e Frederick, apesar de achar que vai ganhar muito dinheiro, é um pé-rapado aspirante a marinheiro. Anne, então, é persuadida (hã, entendeu o nome do livro?) a rejeitar o casamento com Frederick.
Quando eles se reencontram, que é quando o livro começa, a família de Anne está endividada e falindo, mas Frederick tornou-se um capitão bem-sucedido, poderoso e cheio de rancor pela rejeição antiga. O livro mostra a trajetória das duas partes lutando contra os ressentimentos da relação anterior — enquanto Austen permeia as páginas sacadas engraçadas e inteligentes, critica a burguesia, mas também afaga os cavalheiros ricos e merecedores das suas fortunas.
Infelizmente, assisti a terrível adaptação da Netflix do livro. Há pouco o que se falar dela: ela faz uma caricatura terrível da Anne, destrói parte importante da crítica da Austen e descontextualiza o filme em um exercício de fleabaglização da história (mas sem ofensas para Fleabag. A série é incrível, principalmente a segunda temporada). Para quem quiser ver mais sobre o assunto, fique de olho no 30:MIN.
Outro episódio que saiu há pouco tempo foi um sobre o uso medicinal da maconha e sobre a indústria farmacêutica no que diz respeito ao uso de remédios para a dor. Conversamos com a Bruna Martinovic na gravação e um dos livros que usamos na pauta foi Império da dor: A ascensão e queda de uma das mais poderosas famílias americanas e seu criminoso império farmacêutico, escrito pelo jornalista Patrick Radden Keefe.
É um estudo bastante interessante sobre a família Sackler e a união do marketing com a indústria farmacêutica na indicação de uso abusivo dos medicamentos controlados para a dor, principalmente os opioides, mas sem estigmatizar os pacientes que precisam do uso das medicações. O episódio ficou bastante interessante e vocês podem ouvir por aqui.
Para outras duas pautas que estão por vir, li Damas da Lua, um livro escrito por Jokha Alharthi. Vencedor do Internacional Booker Prize (2019), a narrativa é organizada em capítulos com diversos narradores e em um complexo fluxo temporal. Cada um dos focos narrativos traz discussões próprias, seja sobre educação, patriarcado, religião, relações afetivas… Cada uma delas têm um estilo próprio e refinado, montando um retrato da vida de uma pequena comunidade. É o primeiro livro traduzido cuja autoria é nascida em Omã.
Já para a produção de episódios da série Merece o prêmio?, li o livro Não fossem as sílabas do sábado, de Mariana Salomão Carrara, que venceu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2023. Carrara narra a história de um relacionamento entre três mulheres — duas viúvas e uma criança — que surgem a partir de um suicídio.
Quando Ana, a narradora, pede a seu marido para sair do prédio e ajudá-la a carregar um quadro, jamais imaginaria que, ao mesmo tempo, o marido de Madalena pularia da janela do décimo andar e aterrissaria em André, fazendo com os que os dois morressem na calçada. A partir daí, surgem uma relação complexa entre Ana e Madalena (e a filha de Ana e André, Catarina). Um amor difícil, como é dito em certa hora do livro.
O livro tem uma escrita bonita e bastante envolvente. Carrara faz boas escolhas de palavras para mostrar o relacionamento entre as personagens: Ana fala com móveis e as paredes da casa, já que é arquiteta, mas também absorve de André sua capacidade de pensar nas plantas e outras formas de vida e, de Madalena, seu conhecimento sobre as palavras para refletir sobre o sábado, o nome de Catarina e suas sílabas tônicas.
4.
Assistimos aqui em casa ao filme Planeta Fantástico, de René Laloux. Uma animação bastante experimental, publicada em 1973, que coloca os humanos no papel de animais de estimação (e também de pragas urbanas) em uma sociedade comandada por alienígenas.
A inversão é interessante, propõe uma reflexão sobre como tratamos outras formas de vida e seus desenhos são bastante marcados pelo surrealismo, com paisagens oníricas, plantas esquisitas e situações bastante inusitadas. De certa forma, a discussão no relacionamento entre as duas espécies ainda usa bastante o humano como referencial principal, mas acho que para um filme dos anos 1970 é uma leitura válida.
Além disso, fui ao cinema assistir ao novo Alien: Romulus. Gostoso demais. Para qualquer um que já tenha visto um filme da série, não vai ficar muito surpreso com a trama: jovens que vivem em um planeta Terra lascado e explorados por uma megaempresa multinacional dona de tudo fogem ao espaço para tentar encontrar possibilidades para fugir da exploração.
O problema é que eles precisam de um equipamento em uma estação de pesquisa, justamente uma repleta de criaturas alienígenas (e com um androide preocupado na preservação da propriedade empresarial).
Para mim, o grande lance é que o filme trabalha muito bem o horror corporal — e consciente da dinâmica nos papéis de gênero. Mulheres são vítimas marcadas pela gestação enquanto quase todos os homens são punidos por suas ações violentas (bom, uma das cenas me parece a vingança por uma penetração não desejada). O filme me deixou bastante empolgado e com saudades de assistir aos filmes do Cronenberg.
4.1.
Aproveitando o papo de simbiontes e parasitas, uma breve observação na editoria Melecas, Aliens & Gosmas em geral. Terminei a história principal de Spider-Man 2, que tem o Venom como grande vilão.
Apesar de depende da relação com seu hospedeiro e ter uma característica de criatura híbrida, o jogo não traz nada das discussões de Monstro do Pântano ou Aniquilação; também não discute muito questões corporais, como Alien, mas tem uma trama muito legal, protagonizada por Peter Parker e Miles Morales (com alguns momentos-chave de Mary Jane Watson, outra personagem jogável). Como acabei faz pouco tempo, queria recomendar aqui também.
6.
Para encerrar o papo, alguns links legais que apareceram por aqui no último mês — principalmente alguns que foram desenterrados do meu gerenciador de favoritos, o Raindrop.
Li a tradução de um artigo que fala sobre a experiência como mercadoria. Faz uma apresentação breve de como começamos a consumir a experiência, como o ato de viver alguma coisa se tornou algo embutido na criação de valor e que teve início com uma artimanha maliciosa para cooptar a contracultura anticapitalista dos anos 1960 e para fazer com que as pessoas continuassem a consumir mesmo depois da satisfação das necessidades materiais.
Também encontrei o clipe da música The turning of our bones da banda Arab Strap nos meus favoritos. Sei que música é essa? Não. Já tinha ouvido falar da banda? Não. Sei como o link foi parar nos meus favoritos? Muito menos.
Mas estava lá por algum motivo e, depois que vi, entendi. É um clipe muito louco com uma música que eles descreveram, em uma entrevista, como “um encantamento, um feitiço vudu para erguer os mortos”. É inspirada no ritual Famadihana (em tradução, “virada dos ossos”), uma tradição de alguns grupos que moram na ilha de Magadascar em que as pessoas exumam os ossos de entes queridos e dançam com eles. Fica o clipe aqui para quem quiser conferir:
Para não faltar links da editoria de Coisas Vivas, um estudo (em inglês) que descreve pesquisas sobre a personalidade dos animais e o papel importante da aleatoriedade neste processo. O pesquisador, autor do artigo, estuda os peixes da espécie Poecilia formosa porque, como sua reprodução não incorpora o material genético do macho, as crias são como clones da mãe.
Como é possível controlar a exposição e os ambientes do peixe desde seu nascimento, o pesquisador comenta sobre suas possibilidades de observar a personalidade e como maneiras diferentes de enfrentar um problema na natureza são importantes — além de apontar o fato de que, por mais que o ambiente seja controlado e o material genético seja idêntico, muito da construção e amadurecimento cerebral depende de questões aleatórias e imprevisíveis.
Enfim, muitos fatores além da herança genética e do controle ambiental estão por trás daquilo que torna qualquer animal — inclusive nós — aquilo que se é e a forma de encarar a vida.
7.
Como pós-escrito, vale mencionar que:
A editora Fósforo mandou para mim o livro A Inteligência das Aves, de Jennifer Ackerman, e o romance A mais recôndita memória dos homens, de Mohamed Mbougar Sarr;
Ao mesmo tempo, a editora Todavia mandou As mentiras da Nonna: Como o marketing inventou a cozinha italiana, de Alberto Grandi, e os dois primeiros volumes da série Sobre o cálculo do volume, de Solvej Balle.
Obrigado por ler até aqui!
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Outras produções estão disponíveis no meu site pessoal e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
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No último mês, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 492 – Gay de Família, de Felipe Fagundes”;
Participei do episódio: “30:MIN 493 – Palestina, de Joe Sacco”;
Participei do episódio: “30:MIN 494 – Maconha e Outras Drogas”;
Participei do episódio: “30:MIN 495 – Livros sobre separação”.
Parabéns pelo novo trampo, espero que seja maneiro! <3
Também assisti o Alien Romulus e me diverti muito. Tava com saudade de um filme bom assim!
beijocas.