Correnteza # Abril/2024
algumas das coisas que correram na minha vida durante o mês de abril — livros, jogos, filmes, podcasts, quadrinhos e notas aleatórias
Abril passou muito rápido. Quase não vi. Leituras, textos, episódios, aniversários, doenças, catástrofe climática e mobilização. Acabei fechando a edição só agora, com a presença de alguns acontecimentos de maio.
Para os que chegaram nas últimas semanas, a publicação está num semestre de reestruturação e esse é o texto de ~resumo mensal, outrora exclusivo dos apoiadores e temporariamente aberto. Estou pensando nas próximas temporadas, lendo algumas escritoras e repensando meu estilo (falam muito sobre a Anne Carson e quero lê-la. Também preciso fazer uma releitura de Esforços Olímpicos, da Anelise Chen, para checar essa mescla de ensaio e ficção).
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1.
Um dos textos mais interessantes que apareceram por aqui neste mês foi Octavia Butler, Audre Lorde, and the Power of Pleasure [Octavia Butler, Audre Lorde e o Poder do Prazer, em tradução], escrito por Logan Dreher e publicado no portal Reactor. Como o texto está em inglês, vou fazer um breve fichamento antes de comentar.
Ao destacar três histórias de Butler, Dreher aponta a percepção de um fascínio sobre a realidade dos corpos, suas necessidades, fragilidades e o desejo inevitável do outro. Cada uma das três narrativas que Logan Dreher trabalha essa dinâmica a partir do relacionamento entre humanos e não-humanos — estes, fisicamente superiores, mas ávidos e carentes da relação com aqueles.
Os livros que Dreher destaca são:
Em Fledging, romance não traduzido de Octavia Butler, acompanhamos a jornada de uma vampira que retoma suas memórias e tenta seguir com sua nova vida. Ao que nos interessa sobre o assunto, o ponto principal é que Butler não escreve vampiros típicos, mas como simbiontes que precisam de intimidade e contato físico tanto quanto precisam de sangue. Assim, a trama aborda questões de ressentimento, ciúmes e as dinâmicas de um relacionamento não-monogâmico.
O conto Filhos de Sangue também é mencionado. Aqui, temos uma sociedade em que humanos são tratados de forma próxima, mas um pouco melhor, com a que tratamos animais hoje — o grande diferencial é que tal raça extraterrestre, os Tlics, gostam de usar os humanos preservados como hospedeiros para seus ovos para que os filhotes nasçam maiores, mais saudáveis e com uma taxa de mortalidade menor.
Dreher aponta que Butler descreve a própria história como “uma história de amor entre dois seres bastante distintos” (que são Gan, um adolescente humano, e a T’Gatoi, a alien insetóide que quer implantar os ovos no corpo do garoto), mas também como um desafio de escrever uma narrativa em que um homem escolhe engravidar como um “ato de amor”. (Particularmente, acho o conto fabuloso.)Por fim, Logan Dreher também destaca a trilogia Xenogênese (composta por Despertar, Ritos de Passagem e Imago). Aqui, Butler também descreve o relacionamento entre seres humanos e extraterrestres socialmente dependente, mas, desta vez, os aliens têm habilidades sobre-humanas, como o poder de cura e a capacidade de exalar químicos entorpecentes.
Logan aponta que cada uma das narrativas constrói a necessidade do contato enquanto demarca o distanciamento das corporeidades a partir de um certo horror corporal — mas, como muito dos relacionamentos são consentidos, Dreher sente que ela parece perguntar “O que o Prazer faz por nós? Do que estamos dispostos a abrir mão por ele?”
Aqui Logan Dreher retoma o poder do erótico de Audre Lorde, e a nossa formação enquanto processo de ter medo dos desejos mais profundos. Em Butler, Dreher escreve,
“os personagens não são punidos por esta busca [do prazer]. O prazer é representado como sedutor, viciante, mas não vergonhoso. Em vez disto, o prazer se torna um caminho para superar o que Lorde chama de “ameaça da diferença”, que é o meio com o qual personagens humanos e não-humanos entendem melhor uns aos outros. O prazer é, como Lorde diz, ‘uma ponte entre aqueles que o compartilham que pode ser usada como base para a compreensão daquilo que não é compartilhado”.
No texto, Logan não deixa de citar a presença das violências nas histórias. Muitos relacionamentos têm contrapartidas terríveis, mas Butler as coloca ao lado do prazer. Toda ponte pode trazer benefícios, mas também criar caminhos mais fáceis para as ameaças.
Nossos relacionamentos são todos permeados por questões de poder, exploração e hierarquia. Nas narrativas de Butler, as histórias exploram como lidamos com o risco, como fazemos concessões em benefício mútuo, como criar e dar autonomia. Às vezes, tais negociações resultam em violências. Às vezes, não. Dreher conclui o texto com o seguinte parágrafo:
“Como os personagens nos livros de Butler, nossos corpos e nossos desejos nos entrelaçam um relações de dependência mútua, sejam estes relacionamentos sexuais, platônicos ou familiares. E se o prazer é como Butler imagina — viciante, irresistível; se não é frívolo, mas necessário e sustentador da vida como Audre Lorde argumenta, se nosso prazer depende do prazer dos outros, então é também uma responsabilidade. Todos nós temos fome, e qualquer um com fome pode ficar faminto. Com estas histórias, eu vejo Octavia Butler pedindo para refletirmos sobre o que devemos às parcerias que moldam nossas vidas e nosso futuro, quais são nossas obrigações para com as pessoas em quem confiamos, aqueles que se importam conosco quando estamos doentes e aqueles que sentem nossas alegrias como as próprias.”
E antes de passar para o próximo tópico, preciso lembrar das relações estabelecidas em Kindred — da escritora, negra, com o passado escravagista dos Estados Unidos e a própria dinâmica com o marido branco — e do conto Sons da Fala — em que a comunicação e o afeto tem percalços causados pela própria inexistência de parte da linguagem.
2.
Das leituras que passaram por aqui durante abril (e começo de maio), posso separar algumas:
Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino, foi uma releitura. Foi, por muito tempo, um dos meus romances preferidos. Narrado em segunda pessoa, ele conta a sua história, enquanto você, o Leitor, pega o livro Se um viajante numa noite de inverno e senta para a leitura, mas você logo descobre que o livro está com defeito e precisa ir até a livraria trocar… e isso te coloca em uma narrativa alucinante e apaixonante ao lado da Leitora, descobrindo tramas, conspirações e ordens secretas de tradutores.
A leitura aconteceu por causa do clube de leitura do podcast 30:MIN, que faço parte. Gosto desse experimentalismo acessível do Calvino, do seu humor e de como ele faz comentários sobre a própria literatura (e mina a força dela dentro do próprio texto). Se quiser ouvir a discussão, está aqui.Também li A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. É um livro pesado. Em uma sinopse (bastante insuficiente), uma mulher identificada apenas por G.H. entra no quarto de empregada recém desocupado e passa por uma intensa crise existencial. Tal contato desloca diversas certezas basilares sobre religião, misticismo, filosofia e estética. Conversei sobre ele em um dos episódios do 30:MIN gravado com a
, escritora da . Você pode escutar a conversa, que fala também sobre o filme, aqui.No quesito dos quadrinhos, estou em dia com One Piece (de acordo com a publicação nacional da versão 3 em 1, o que significa que estou no capítulo 650 e alguma coisa). Além disso, li o quadrinho A garota que seria a morte, spin-off de Sandman escrito pela Caitlin R. Kiernan. Interessante.
2.1.
Também conclui a Tetralogia Napolitana, da Elena Ferrante. Precisei deixar como item separado porque, sem exagero, é uma das melhores coisas já escritas que eu li. Digo isso porque vai além do gostar ou não, mas pela execução e maestria na escrita que Elena Ferrante demonstra. A série de livros, composta por quatro livros (A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem vai e de quem fica e História da menina perdida), é um romance de formação. Sob o ponto de vista de Lenu, acompanhamos uma história que vai dos primeiros anos de vida até a velhice.
Mas aqui há o primeiro ponto de destaque para a saga: Lenu cresce ao lado de sua melhor amiga, Lila. Ambas nascem em um bairro pobre e precisam fazer escolhas que definirão seu desenvolvimento econômico, social, familiar, intelectual… a dinâmica funciona como se Lila e Lenu fossem duplos, espelhando pensamentos e ideias, atuando como ancoradouros em momentos-chave e servido de referência para as vidas possíveis, desdobramentos em um universo alternativo.
Há, na trama, muitas coisas que estão em funcionamento no plano de fundo enquanto observamos os acontecimentos no primeiro plano. Parte do motivo é que questões políticas e de classe são sempre levadas em consideração: a formação não é só um percurso permeado de escolhas, mas das limitações/possibilidades do ambiente. Quais meninas podem ir para a escola? Qual escola? Até que grau de educação? Como ocorrem as educações sentimentais e sexuais? Quem são os parceiros possíveis? Qual sua posição na hierarquia do bairro, seus posicionamentos políticos e com quem você pode se relacionar?
Durante a leitura, enquanto Lenu descreve seus estudos, há a percepção de um sacrifício silencioso de Lila — como se apenas uma das duas garotas inteligentes pudesse fazer sucesso e a escolha de uma ocasionaria no silenciamento da outra. Além disso, é possível perceber que não há uma formação “autocentrada”, onde o sujeito é a medida superior para os resultados e decisões da vida, mas há uma definição a partir do ambiente e dos outros: muitas vezes, as personagens definem-se e atuam de acordo com a percepção externa, não a partir de um suposto pensamento racional.
Além das relações entre Lenu e Lila, diversos espelhamentos e paralelos são traçados entre as pessoas do bairro — algumas percepções, inclusive, são lançadas logo no primeiro livro e são concluídas apenas no último. Por fim, como os livros são centrados em figuras femininas, muito da dinâmica de poder de gênero aparece dentro das páginas. A formação intelectual feminista de Lenu, por exemplo, acompanha os debates e publicações que surgiram ao longo do século XX, uma vez que Lenu atinge a terceira idade no começo dos anos 2000, ao mesmo tempo que vemos discussões sobre comunismo, socialismo, capitalismo, movimento operário, partidos políticos, poder do Estado, fascismo, enfim… tudo isso muito bem representado e debatido nas páginas.
Não me alongo mais aqui porque logo mais escrevo uma resenha sobre os livros para o jornal Rascunho. Compartilho quando a edição for publicada. De qualquer forma, adianto parte das minhas anotações e minha recomendação de leitura.
3.
No âmbito audiovisual, nada novo. Reassisti alguns episódios de Rick and Morty, vi os quatro primeiro episódios de Bebê Rena e detestei a série e sua irresponsabilidade. Assisti ao filme Medida Provisória — que é bom, apesar do didatismo tornar algumas situações caricatas.
Vi o primeiro episódio de Matéria Escura e estou quase terminando X-Men ‘97.
Larguei a jogatina de todos os jogos para focar em Dave the Diver, que já platinei. Agora, comecei Balatro e recomecei, do zero, Hades.
4.
Para encerrar, dois links muito rápidos.
O primeiro deles é sobre o estudo sobre a linguagem das baleias desenvolvido pela NASA. Katharine Latham, da BBC, escreveu uma matéria sobre Como baleias podem ensinar cientistas a falar com alienígenas. A partir de gravações e identificação de grupos, foi a primeira vez que eles conseguiram estabelecer uma conversa “mais longa” com uma das baleias jubarte. Achei curioso como explicam a inteligência e a complexidade comunicativa dos cetáceos.
Por exemplo, por “longos, rítmicos e em constante evolução, os cantos das baleias podem fluir por bacias oceânicas inteiras. Elas tagarelam com assobios e pulsos ou usam a ecolocalização (localização atráves do som) para pintar imagens de seu mundo subaquático”. Além disso, “filhotes balbuciam como bebês humanos. Acredita-se que alguns tenham nomes, e que grupos de diferentes partes do oceano tenham dialetos regionais. Já foram ouvidas baleias imitando os dialetos de grupos estrangeiros — e acredita-se que algumas delas tenham até tentando imitar a linguagem humana”.
Além disso, a CNN compartilhou a notícia de que Cientistas observam orangotango tratar ferida com planta medicinal pela 1ª vez. Pelo que entendi, o título é um tanto impreciso: o uso já era conhecido, mas nunca antes conseguiram observar e gravar o acontecimento. Deixo o registro gravado abaixo para vocês — mas acho sempre curioso essa empolgação de descobrir o que é possível intuir sobre a inteligência e sensibilidade das vidas não-humanas.
5.
Nas últimas semanas, vale destacar a parceria e envio de algumas editoras:
Do evento mensal da editora Todavia, assisti ao evento de lançamento do livro tem um gato no frontispício, escrito por Sofia Mariutti e ilustrado por Vitor Rocha. O livro, que é feito “para as infâncias”, é um misto: parte do livro mostra a trajetória de produção de um livro, da concepção à crítica; mas, simultaneamente, a parte textual faz comentários metalinguísticos sobre as partes dos livros, como o frontispício ou a “minhoca na lombada dançando lambada”.
Recebi, também, a tradução de Um mundo imenso: como os sentidos dos animais revelam reinos ocultos à nossa volta, escrito por Ed Yong (que gosto muito); Seul, São Paulo, de Gabriel Mamani Magne, e O púlpito: fé, poder e o Brasil dos evangélicos, de Anna Virginia Balloussier.Outros dois livros que estavam no meu radar eram índice, uma história do: uma aventura livresca, dos manuscritos medievais à era digital, de Dennis Duncan, e Os superstars da cadeia, de Nana Kwame Adjei-Brenyah. Recebi da editora Fósforo no mês passado e estou ansioso pelas leituras.
Também recebi o último lançamento de Valter Hugo Mãe, Deus na escuridão, publicado pela Biblioteca Azul, uma edição com prefácios de Rodrigo Amarante e Carlos Reis. Do autor, só li & reli A desumanização e li Homens imprudentemente poéticos. Quem sabe é uma boa oportunidade para retomar a leitura.
Por fim, retomando a temática de catástrofe climática, a Boitempo enviou três títulos atuais, importantes e muito interessantes: (1) a autobiografia Vandana Shiva, importante ativista ambiental pouco conhecida. Intitulado Terra viva: minha vida em uma biodiversidade de movimentos, o livro une suas trajetórias e experiências com um percurso de formação filosófica, feminista e nas pesquisas no campo da Física. (2) A coletânea de textos sobre neoliberalismo de David Harvey, Crônicas anticapitalistas: um guia para a luta de classes no século XXI; (3) Além disso, o #43 volume da revista Margem Esquerda, com um dossiê temático sobre Crise Ecológica: marxismo, capitalismo e ecologia.
Obrigado por ler até aqui!
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Outras produções estão disponíveis no meu site pessoal e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
Se quiser conversar, pode responder esse e-mail ou me encontrar no Instagram.
No último mês, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 475 – Como você faz para indicar livros?”;
Participei do episódio: “30:MIN 476 – ‘A pediatra’, de Andréa del Fuego”;
Participei do episódio: “30:MIN 477 – ‘Lore Olympus’ merece o prêmio?”;
Participei do episódio: “30:MIN 478 – A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector”;
Participei do episódio: “30:MIN 479 – Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino”;
Participei do episódio: “30:MIN 480 – O diabo na literatura”;
Tive um conto de minha autoria publicado na revista Pulpa: Aquela que repousa no centro do moinho.
aiii a tetralogia é algo maravilhoso mesmo <3
Eita que compiladao! Tou lendo o livro sobre o índice e gostando muito! Ce vai no encontro da fósforo? Se sim, nos vemos lá. Beijo