Breve reflexão sobre magia & poder
Como magias refletem relações de poder e limites do pensamento racional da sociedade?
Recentemente, voltei a ler Atelier of Witch Hat (ou Ateliê do Chapéu Bruxo, não sei porque não traduzem alguns nomes…), um mangá de Kamome Shirahama, e fiquei lembrando de um curso sobre a escrita de magia que fiz com a
. Desde o encontro, não consigo desvincular a ideia de que a forma com que uma sociedade visualiza a magia revela também as estruturas das suas relações de poder.Não só pela questão básica de quem tem acesso à magia ou pela forma como as pessoas enxergam a magia, mas também pela forma como o conhecimento mágico e a racionalização do pensamento dialogam — uma relação que, às vezes, esbarra no próprio fazer artístico.
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Breve reflexão sobre magia & poder
Não tenho certeza se a relação entre magia e poder é tão perceptível. Por um lado, foi só durante os encontros no curso da Cláudia Fusco que fiquei mais sensível à temática; por outro, nunca gostei da Famosa Série de Bruxos TM porque acho inconcebível um mundo mágico cujo encantamento mantém a exploração capitalista sem questionamentos e nem passei do primeiro volume (quer dizer, você não acha estranho a produção massiva de varinhas feitas de chifres de unicórnio pra ter um estoque gigantesco numa loja sendo que nem existem tantos bruxos assim?).
Algumas das questões do workshop estão no episódio #40 — Magia na narrativa, do podcast Curta Ficção, com a participação da Jana Bianchi e da própria Cláudia. Importante destacar algo que elas comentam logo no início: estamos falando da magia por uma perspectiva ocidental, cujo emprego está, desde a Grécia Antiga, associado a práticas negativas.
Apesar de fazer parte de costumes ao longo da história da humanidade, a magia é vista como algo pejorativo desde muito séculos: ela demarca aquilo que fica fora da pensamento ocidental. Fica claro se elencarmos algumas categorias de comparação, como a dualidade entre o religioso e o pagão; o selvagem e o civilizado; o racional e o místico; maléfico ou divino; até a esfera do espaço feminino e o masculino.
A cisão fica ainda mais evidente em áreas turvas, como a Alquimia. A prática tinha uma ligação direta com o oculto e o místico, mas é nomeada como teoria científica ou pseudociência, enquanto os conhecimentos de mulheres camponesas, como o de ervas medicinais, foi classificado como bruxaria e punido com a morte.
Por isso, o uso dela como artifício nas narrativas é algo recente… mas sinto que há uma nuance que incorpora as dicotomias da história da magia.
Os cenários de RPG medievais, como Dungeons & Dragons ou Pathfinder, servem de exemplo. Ignorando as outras classes mágicas, há uma rivalidade entre Magos e Feiticeiros nesses mundos. Os primeiros integram Ordens e Escolas de Magia: há um sistema de ensino, educação, controle e acesso. A magia está dentro de uma hierarquia acadêmica. Os feiticeiros, por outro lado, recebem magias pelo sangue — geralmente porque são filhos de relações entre diferentes raças — e são marcadas pelo poder Bruto ou Selvagem.
De maneira semelhante ao exemplo da Alquimia, parte da magia nos universos fictícios é legitimada porque passa por um processo de incorporação ao pensamento racional. A Magia é domesticada, setorizada, controlada e, muitas vezes, colocada entre paredes de acesso restrito. Com frequência, os magos tem tutores, aprendizes, línguas cifradas, rituais, provas e testes. Para ser aceita, ela precisou ser racionalizada — ao menos, parcialmente.
Mas além do conhecido dilema de “o não-iniciado tem acesso ao conhecimento secreto”, a magia também pode lidar com outras questões, como a potencialidade de gerar mudanças nas estruturas das sociedade, seja a discussão entre liberdade e segurança ou sobre a capacidade de dar poder de mudança às minorias sociais.
A Trilogia da Terra Partida, escrita por N.K. Jemisin, traz essas questões ao redor dos orogenes, pessoas capazes de lidar magicamente com as energias tectônicas do planeta. No entanto, precisam manter seus poderes em segredo se não quiserem ser linchados pelos vizinhos e amigos — nem crianças são poupadas. Nem sempre foi assim: antigamente, os orogenes eram entregues para o poder oficial, sob vigilância de assassinos treinados para lidar com usuários de magia. Eram levados para um centro de treinamento, como um internato, onde aprendiam a controlar seus poderes e eram classificados de acordo com a quantidade de anéis que possuíam.
Quando a magia aparece nessas narrativas, diversos fatores articulam-se: a reflexão sobre os indivíduos que são excluídos do pensamento ocidental racional (e, também, sensações. Mágicas são… mágicas. É possível criar matéria a partir do nada, distante da lógica científica); as problemáticas de acesso à educação; a estrutura hierárquica e disciplinar da educação; o perigo do selvagem, do encantado e do fantasioso… Susanna Clarke articula essas dicotomias de forma brilhante quando escreve Jonathan Strange & Mr. Norrell e coloca a magia britânica da forma enfadonha e técnica em contraposição ao poder bruto e hedonista das fadas.
Atelier of Witch Hat
Todas essas questões estão presentes no mangá de Kamome Shirama, Atelier of Witch Hat. Lançado desde julho de 2016, ainda em lançamento, o gibi conta a história de Coco, uma garotinha apaixonada por magia que morava em um pequeno vilarejo com sua mãe. Seu grande sonho era se tornar bruxa… mas não tinha nascido predestinada.
Quando sua aldeia recebe a vistia do bruxo Qifrey, Coco descobre um segredo: a magia não é inata, mas aprendida e realizada por desenhos com um nanquim especial. Ela corre até seu quarto, abre um livro misterioso recebido por um homem de chapéu pontudo anos atrás e faz uma cópia de um dos desenhos dentro do livro.
O que Coco não sabia é que aquele era um desenho da chamada magia proibida e, como efeito colateral, a garota petrifica sua casa e a própria mãe enquanto passa a ser um elemento-chave na luta entre os bruxos Chapéus com Aba e os Chapéus sem Aba.
O conflito tem raízes antigas e o estudo de história é necessário na formação dos bruxos. Antigamente, quando a magia não era controlada, o acesso era praticamente irrestrito… mas isso tinha sua contraparte: o poder também era acessível para os que tinham más intenções.
Então, a paisagem do mundo é moldada por cenários distorcidos pela magia; povos foram transformados em ouro por um rei ganancioso; bruxos realizam manipulações corporais, tatuavem feitiços e se tornavam seres híbridos com outros animais. Certo dia, uma Ordem de bruxos resolveu controlar a situação. Estipulou regras, caçou contraventores e estabeleceu uma política de memória: feitiços de amnésia apagaram a existência da magia da memória de todos os seres humanos e restringiu o acesso à formação mágica apenas aos escolhidos.
As crianças de cada uma das famílias tradicionais são enviadas para ateliês, coordenados por um bruxo experiente e que realizou a última prova de magia (como um doutorado, é opcional na formação e indica que um bruxo está apto a receber pupilos) e por um bruxo-olho, responsável por fazer a vigilância do tutor e reportar os acontecimentos aos superiores. Os aprendizes se mudam para o ateliê do professor e moram ali ao longo da sua formação.
Há uma rigidez no método de ensino: as provas são obrigatórias e os métodos parecem ultrapassados. Tartah, um aprendiz, não pode se tornar bruxo por uma condição física que, como o daltonismo, faz com que ele enxergue apenas em tons de cinza (um tanto metalinguístico, não? já que é como fica a impressão do mangá…). Eunie, outro aprendiz, é frequentemente humilhado e desrespeitado pelo tutor.
O aprendizado entre as magias permitidas e as proibidas é bastante restritivo. O uso daquilo que foi banido, mesmo que para salvar vidas, é imediatamente punido com a amnésia. O conselho possui políticas estritas de memória, sobre como e o que pode ser lembrado pelas pessoas… e um poder estrito sobre os corpos e o como eles podem se portar, já que nenhuma magia (exceto a que afeta a memória) pode ser lançada sobre os corpos, apenas sobre objetos.
Há um outro paralelo possível entre magia e arte. Em um de seus vídeos, Alan Moore fala sobre como a magia é uma das formas antigas de falar sobre A Arte, já que seria uma ciência que discute como manipular símbolos para causar mudas na consciência. Nessa lógica, um grimório, por exemplo, pode ser um livro de feitiços ou uma gramática que te ensina a usar aquela linguagem.
Em Atelier of Witch Hat, as magias são feitas por códigos visuais. Os bruxos desenham círculos com símbolos específicos: alguns se relacionam com elementos; outros, com forma; alguns, indicam repetições. O segredo é conseguir dominar aquela gramática visual e aplicá-la para gerar os efeitos desejados.
O serviço de entregas da Kiki, filme de Hayao Miyazaki, é outro que estabelece um paralelo entre magia e arte quando a protagonista está em dúvida em relação aos seus poderes. Abrigada pela amiga pintora, ambas discutem sobre os processos criativos das duas formas de criação.
Mas parte disso também está relacionado ao fato de que o seu repertório mágico se relaciona com um estilo de desenhar e fazer mágicas e — consequentemente — com um processo de autodescoberta. Por mais que existam símbolos e códigos visuais padrão, é possível reorganizá-los e empregar sentidos que respondam às angústias e desejos pessoais. Cada uma das alunas enfretam esse problema de descobrir quem elas são. São crianças com conflitos intensos, crescendo e estudando.
Coco quer salvar a mãe, petrificada em um acidente, mas suas colegas também tem questões pessoais intensas. São problemas com a família, o medo de ser apagada pelos ensinamentos do tutor ou o desejo de criar magias relevantes e prestativas. Cada uma delas quer criar um repertório de magias — de desenhos, de arte — que possa resolver as questões pessoais.
Enfim… sintetizando tudo, vemos como a magia aqui revela questões de uma dicotomia que Bauman já apontava entre Liberdade e Segurança; indica a presença de minorias e privilegiados, em um sistema de pessoas escolhidas de acordo com sua família de nascimento; envolve o poder exercido sobre o corpo, a memória e a edução; além de questões como identidade, autodescoberta e criação artística.
…e como é um tema que muito me agrada, fica a pergunta: lembrou de alguma outra narrativa? Conta para mim.
Uma última fagulha: Frieren
Para não deixar acabar sem falar de um anime que estou assistindo e adorando, fica também a recomendação para Frieren e a Jornada para o Além. O que aconteceria caso você, uma elfa maga quase imortal, completasse o propósito da sua vida e destruisse o lorde maligno?
Essa é a premissa da animação. Frieren e seu grupo de amigos completaram sua missão, voltaram para a cidade depois de derrotar o Rei Demônio e continuaram suas vidas. Assumiram cargos nas cidades, estudaram, continuram em suas profissões, tiveram aprendizes… envelheceram… morreram… mas Frieren, não.
Então, acompanhamos sua história e o que começa como uma maga que, aparentemente, coleciona magias estranhas — como as que removem ferrugem das estátuas ou transformam uvas doces em azedas — se transforma em uma reflexão sobre legado, propósito e amizade.
Descobrimos que as uvas preferidas do anão do grupo eram as azedas; que as estátuas de um deles está frequentemente enferrujada e precisa ser limpa; que a magia dos inimigos poderosos antigos foi estudada, aperfeiçoada e se tornou quase inofensiva.
Ao poucos, vemos como as magias se relacionam com as histórias que viveu, com aquilo que ela se tornou e as relações que construiu: um grimório que não é apenas uma gramática, mas também um livro de memórias.
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Outras produções estão disponíveis no Estantário e você pode me ouvir falando de literatura no podcast 30:MIN.
Se quiser conversar, pode responder esse e-mail ou me encontrar no Instagram.
Nos últimos 15 dias, eu:
Participei do episódio: “30:MIN 450 – 10 anos de 30:MIN!”;
Participei do episódio: “30:MIN 451 – A Vegetariana, de Han Kang (com Gustavo Mano)”;
Participei do episódio: “30:MIN 452 – Como você faz para ler livros difíceis?”.
Oi Arthur! Oi pessoal! No último ano me envolvi muito com o gênero de fantasia chinesa Xianxia e uma das premissas que mais me apetece nele é que, ao menos em teoria, qualquer um pode evoluir até alcançar poderes sobrenaturais. Através do cultivo da alma (uma forma de meditação), prática da bondade e lutas é possível se fortalecer e atingir a pureza da alma. Vemos elementos do budismo, taoismo, artes marciais e medicina tradicional chinesa, além de outras coisas. Isso significa que mortais podem evoluir até se tornar imortais. Às vezes até animais e plantas evoluem nessas narrativas e tornam-se imortais. Entretanto, é comum haver uma hierarquia marcante, graus de evolução. Seres de graus mais altos podem ser acometidos pela soberba e arrogância e perder parte de seu cultivo, retornando a níveis inferiores. Seres de hierarquia mais baixa podem realizar algo extraordinário e adquirir muito cultivo rapidamente, tendo dificuldades em conviver com o novo nível. Enfim, há muitos elementos interessantes nas histórias com cultivo chinesas. São narrativas que se popularizaram no século passado e estão em Manhuas (seriam os mangas chineses), Donghuas (animes chineses), TV, filmes, jogos... Recomendo pra quem curte fantasia com uma pegada asiática.
Assunto muito interessante! Vale a reflexão