Originalmente publicado na Faísca: Temporada 5, Episódio 15 (2022)
Ao serem atingidos pela sinistra peçonha, os cabelos caíram e, com eles, caíram o nariz e as orelhas, a cabeça reduziu-se-lhe, e todo o corpo ficou diminuto. Em lugar de pernas, pendem lateralmente uns mirrados dedos. Tudo o mais é ventre, de onde, contudo, desprende ela um fio. E, sendo ela aranha, vai tecendo as antigas teias.
Ovídio (em Metamorfoses — tradução de Domingos Lucas Dias)
Para fora de sua toca, a Arquivista rasteja. De seu entrelugar, já não percebe mais o cheiro de ferrugem e mofo. Tudo o que processa são seus fios, a respiração e o batuque ritmado — senso de urgência e missão autoatribuída: armazenar a memória da humanidade.
Arquiva por amor. Sabe que, cedo ou tarde, a memória das coisas que passam pela Terra será calcinada. Algas, bactérias, tabuletas e qubits. Talvez, as únicas sobreviventes sejam as mensagens enviadas ao espaço. Talvez, nem isso.
Com exceção da Arquivista. E ela sabe.
Considera-se uma curadora da memória terrena, dos DNAs até as linguagens. Navega pelas teias da realidade e cataloga tudo em seu sistema. Logobits de informação, impressões. Quadros. Ondas. Neons. Folhas soltas, esparsas. Espirros. Sorrisos. Vasos, preces, famílias, amores, afetos, choros, poesias, palavras, vidas, músicas, sons.
Em sua carcaça andrógina, diversos compartimentos. Apesar do tronco humanoide, suas costas se distendem. Do ventre metálico estirado, pernas ansiosas e biometálicas rasgam a superfície, procurando espaço. Tremendo.
Seu corpo reflete a fluidez do tempo, do espaço. Seus vários pares de olhos fitam o mundo e sua quelicerandíbula nervosa ressona. No entanto, sob o olhar do ser atento, sua passagem é quase relegada à inexistência. É um vulto, um calafrio.
Ao vagar pelas esquinas da realidade, a desfiadeira a transforma em uma trama pulsante. De seus braços, mãos que viram pinças-agulhas que desfiam e montam novelos. Fios de histórias, fio de História. A arquivista desassembla, desfragmenta e memoriza. Ela vaga pelas ruas, pelos parques, com suas pernas — um ranger de ossos e músculos e dobradiças, depois de um longo tempo de repouso. Choque térmico e borborigmos.
Suas partições estão repletas de tentativas. Novelos incompletos, padrões distorcidos, deformados, rasurados. Como um espelho de Aracne, ela descostura, desconstrói, desiste. A Arquivista recalcula as probabilidades, sua ansiedade é crescente.
Até que tudo renasça, ela espreita em sua toca.
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