Anemonações #4 — Viver é muito perigoso...
Algumas notas sobre a vida, o amor e o diabo em 'Grande sertão: veredas', de João Guimarães Rosa
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É curioso como alguns clássicos passam a sensação de serem próximos e conhecidos — como amigos próximos de um amigo.
Quando li Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, achei que o livro seria menos inédito por conhecer a reviravolta e a filosofia de vida do personagem principal, Rodion Raskolnikóv. Mas… não foi e a epifania final me atingiu do mesmo jeito.
Quer dizer, isso não significa que aprendi com os erros. Ainda acho que sou amigo da dupla Dom Quixote e Sancho Pança, que já caminhei pelos céus e infernos com Dante, que estive na plataforma de trem com Anna Karenina e naveguei de volta para casa com Ulisses — apesar de não ter lido mais do que alguns parágrafos desses livros.
Clássicos não são eternos — felizmente. Toda vez que pensamos em um cânone, ele é ligeiramente reconstruído: elencamos questões, valores e significados para as obras, num fluxo intenso de momento da escrita e tempo presente. Quando dizemos que algo é um clássico podemos, por exemplo, afirmar que questões tratadas ali ainda ressoam de alguma forma.
Então, quando abri as primeiras páginas do Grande sertão: veredas, estava preparado para ler uma história de amores proibidos, uma reflexão sobre a essência do afeto. Algo que fosse clássico. Achei que trotar pelos caminhos do sertão rosiano seria fácil, que eu acompanharia os jagunços todos de perto.
Nonada, como diria Riobaldo. Fui pego desprevenido. De novo.
“Já tenteou sofrido o ar que é saudade?”
Grande sertão: veredas
Publicado pela primeira vez em 1956, Grande sertão: veredas foi um marco na literatura brasileira, publicado pelo escritor, diplomata, médico e poliglota João Guimarães Rosa. Em Genealogia da ferocidade, Silviano Santiago caracteriza o romance como um monstro da literatura brasileira, como “uma bofetada” na cara.
Curioso destacar que, nesse percurso, Rosa era relativamente desconhecido. Como Santiago escreve, “ao contrário dos poetas e artistas paulistas e cariocas, [Guimarães Rosa] não se apresenta ao público por manifesto literário, publicado previamente em suplemento ou revista. Nada de teórico ou de programático o salvaguarda, ou seja, nenhum a priori estético respalda seus sucessivos e inúmeros escritos em prosa. Rosa não tem companheiros de geração ou de escola a defendê-lo”. Ao publicar seu romance, João Guimarães Rosa é um “solitário cavaleiro andante em defesa da insólita e exclusiva causa estética, política e social, seu monstro”.
De acordo com Silviano Santiago, o romance de Rosa estabelece pouca ligação com aquilo que o precede e com o que lhe é contemporâneo. Grande sertão: veredas não tem muitos paralelos com as quase três décadas de literatura que o precedem. Também não se respalda com o projeto de modernização do Brasil. Ao falar sobre Brasília, por exemplo, Santiago evidencia que “Grande sertão: veredas é — ao contrário da nova capital federal — ribeirinho e verde, barrento e encardido, anárquico e selvagem. (...) Nada tem a ver com a artificialidade do lago Paranoá”.
De forma geral, não está relacionado ao “construtivismo lógico-matemático e abstrado” da primeira Bienal de São Paulo. Divide algumas relações com o poetas experimentais, mas apenas pelo trabalho com a linguagem e a criação de neologismos. Nada tem a ver com a bossa nova ou o jazz. Tampouco guarda semelhanças com os livros mais circulados à época do lançamento, que eram O encontro marcado, de Fernando Sabino, e Vila dos Confins, de Mário Palmério.
“Em 1956, na qualidade de monstro propriamente literário, Grande sertão: veredas interrompe o caudal de leituras do historiador ou do especialista em prosa e poesia brasileira, atravancando o fluxo histórico. Interrompe o percurso linear e cronológico das obras literárias, que descendem da incontornável Carta de Pero Vaz de Caminha, como um rochedo que despenca do alto de uma montanha. (...) O rochedo interrompe a viagem do trenzinho [da história literatura]. Fá-lo descarrilar e o joga para fora dos trilhos, ribanceira abaixo. E passa a exigir — sem muito sucesso, o que é natural, já que se trata de algo monstruoso que despenca do alto da montanha — que as locomotivas que daquele momento em diante passem por ali tenham de se adequar à bitola larga, larguíssima da modernidade literária inaugurada pelo inédito Grande sertão: veredas.”
Silviano Santiago conclui esse capítulo afirmando que “no panorama da literatura brasileira, Grande sertão: veredas - e, de maneira geral, a prosa mais experimental de Guimarães Rosa - sobrevive como aberração inquietante, perturbadora e solitária”. Por isso, sem ter a pretensão de domesticar o “monstro rosiano”, quero apenas compartilhar algumas das coisas me encantaram.
Aos que não conhecem a narrativa, Guimarães Rosa se propõe a contar o relato história do velho Riobaldo em seus anos de juventude. Ali, ouvimos a história de uma guerra entre dois bandos rivais e todos os percalços do caminho — pactos fáusticos, amores, travessias, alianças, festas e tiroteios.
A oralidade é uma marca forte no livro. O depoimento é escrito na íntegra, como uma transcrição. O que lemos é essa espécie de entrevista, a interação de Riobaldo com um interlocutor oculto — que podemos supor ser um duplo do próprio Rosa.
Inclusive, aos que sentirem dificuldades com a leitura, a dica é sempre ler em voz alta. Apesar da linguagem experimental e dos neologismos, o texto funciona bem quando ouvido. A escrita de Rosa é uma particularidade brasileira do autor — poliglota & estudioso de diversas línguas — mas que reflete um conhecimento profundo de manipulação de linguagem.
Grande sertão: veredas foi um dos livros que me fez feliz por ter português brasileiro como língua nativa e sentir a construção desse texto. Às vezes, brincamos ao falar que temos inveja de alguém que pode ler um livro marcante pela primeira vez. No meu caso, tenho de quem está lendo pela quinta vez e pode esmiuçar o texto sem estar deslumbrado como eu estava.
É o sertão, é o mundo
Tudo no livro parece bem medido e bem pesado. Encaixa. A primeira dessas construções que eu gostaria de destacar é a dos paralelos e dualidades.
O próprio título reflete essa construção. Grande sertão (amplitude; o espaço mitológico do sertão como mundo; grande questões humanas; heróis; grandiloquência; História): veredas (pequenos caminhos; bifurcações; o subjetivo; as escolhas; o anônimo; as ruínas; a história no rés-do-chão).
Riobaldo chega a refletir sobre isso dentro do próprio romance, como nos trechos em que diz: “muito ribeirão e vereda”, mas “o sertão é do tamanho do mundo”. Um pouco depois, explica “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda”.
É até possível fazer um paralelo sobre como o romance é construído para refletir sobre as questões existenciais a partir da trajetória de um único indivíduo. Riobaldo comenta sobre a própria história: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas”.
Ao refletir sobre esses caminhos, Riobaldo adentra em questões existenciais com uma liricidade muito bonita. Como definir o curso dessas veredas da vida? Por isso, de forma recorrente, Riobaldo afirma que “viver é muito perigoso”, que “viver é um descuido prosseguido”.
Ao rever as veredas que percorreu para chegar até onde está, o ex-jagunço evidencia os acasos & as pequenas escolhas. Como pequenos atos levam o sujeito até os grandes acontecimentos.
“Ao que, digo ao senhor, pergunto: em sua vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, todas, em caso curto de acaso foi que se conseguiram — pelo pulo fino de sem ver se dar — a sorte momenteira, por cabelo por um fio, um clim de clina de cavao. Ah, e se não fosse, cada acaso, não tivesse sido, qual é então que teria sido o meu destino seguinte? Coisa vã, que não conforma resposta. Às vezes essa ideia me põe susto.”
Do amor…
Um dos grandes acontecimentos na vida de Riobaldo é seu relacionamento com Diadorim, companheiro de bando. Ambos vivem uma espécie de amor proibido — impossibilitado também por juras de vingança e pelo papel crescente que ambos adquirem na guerra contra Hermógenes.
Nesse relacionamento, ponto em que mais achei conhecer a narrativa, fui encantado pela beleza com que Riobaldo falava de Diadorim. Separei algumas das frases que me tocaram para compartilhar com vocês:
“Em Diadorim, penso também — mas Diadorim é a minha neblina…”
(…)
“Por mim, só, de tantas minúcias, não era o capaz de me alembrar, não sou de à parada pouca coisa; mas a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Sei como sei. Som como os sapos sorumbava. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delém que me tirava para ele — o irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto. Quase que sem menos era assim: a gente chegava num lugar, ele falava para eu sentar; eu sentava. Não gosto de ficar de pé. Então, depois, ele vinha sentava, sua vez. Sempre mediante mais longe. Eu não tinha coragem de mudar para mais perto.”
(…)
“Gostava dele quando fechava os olhos” & “eu gostava dele na alma dos olhos, gostava — na banda de fora de mim”.
(…)
“Diadorim, que vinha atrás de mim uns metros, quando virei o rosto vi meu sorriso nos lábios dele”.
Tal relacionamento é permeado pela insegurança do “sentimento proibido”, que até cheguei a duvidar do que lia. Pensava: “será mesmo mesmo que Riobaldo é apaixonado por Diadorim? Diadorim é apaixonado por Riobaldo?” e, pouco tempo depois, chegavam trechos em que Riobaldo dizia coisas como “minha vontade era beijar aquele perfume no pescoço”.
…e seus demônios
Soma-se à confusão do amor, a relação do Riobaldo com o diabo. Ao longo da narrativa toda, o ex-jagunço se questiona sobre a existência de Deus e do Diabo, fala sobre as possibilidades reais de realizar um pacto fáustico e da insegurança dele em relação aos ocorridos da história.
Às vezes, parece que o que lemos é não só a rememoração de Riobaldo, mas também sua tentativa de justificar (e, quem sabe, se convencer) tudo o que aconteceu. Por vezes, afirma ser impossível vender a alma. Em outros momentos, diz: “Eu não vendi minha alma. Não assinei finco”.
Mas, a conclusão é mais maleável e bem menos certeira do que Riobaldo gostaria:
“Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa — a inteira — cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, uma norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver — e essa pauta cada um tem — mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é”.
(…)
“E procurar encontrar aquele caminho certo, eu quis, forcejei; só que fui demais, ou que cacei errado. Miséria em minha mão. Mas minha alma tem de ser de Deus: se não, como é que ela podia ser minha? O senhor reza comigo. A qualquer oração. Olhe: tudo o que não é oração é maluqueira… Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi minha alma… Meu medo é este. A quem vendi?”
Afinal de contas, é impossível manter certezas nesse rumo que é a vida. Como Riobaldo mesmo diria, “viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo”.
“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
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